MP paulista abre inquérito para apagar vídeos de youtubers mirins

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 7 de janeiro de 2019 às 07:11
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 19:17
compartilhar no whatsapp compartilhar no telegram compartilhar no facebook compartilhar no linkedin

Crianças estão sendo usadas para driblar a lei e fazer propaganda infantil abusiva

Doze vídeos feitos por Júlia Silva em 2012, contratados pela empresa Mattel, são questionados pelo MP de São Pauloreprodução youtube / Reprodução youtube

Apresentadora de um canal com 4.257.198 seguidores no Youtube, a estudante Julia Silva, 13 anos, está se sentindo exposta pela primeira vez. A menina que faz sucesso na internet abrindo bonecas novas em frente à câmera, mostrando o próprio quarto ou compartilhando passeios com a família foi alvo de uma série de notícias nesta semana após o Ministério Público de São Paulo (MPE-SP) pedir à Justiça que o Google derrube 102 vídeos dela e de outros seis youtubers mirins.

Para a promotoria, eles estariam sendo usados por empresas para driblar a lei e fazer propaganda infantil abusiva. Nos vídeos, os jovens influenciadores digitais aparecem desembrulhando brinquedos e mostrando detalhes, modalidade conhecida por “unboxing”. 

Também exibem material escolar, falam de novidades no cinema ou programas na TV  —  segundo o MPE, formas de propaganda disfarçada e ilegal.

O inquérito foi instaurado após denúncia do Instituto Alana, ONG voltada para direito das crianças

No caso de Julia, a promotoria questiona uma serie de 12 vídeos, feitos em 2012, que foram contratados pela fabricante de brinquedos Mattel. Na sequência, a youtuber mirim brinca com bonecas Monster High e promove “desafios culturais” para as crianças. Os vencedores conheceriam a sede da empresa e se encontrariam com a youtuber.

A ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual cita sete youtubers mirins e 15 empresas. Entre elas, estão o canal de TV a cabo Cartoon Network e a Arcos Dourados, maior operadora da rede de restaurantes McDonald’s. 

Em nota, o Google e a Mattel disseram que não iriam se pronunciar. O McDonald’s afirma que “não trabalha com youtubers mirins” e que não faz anúncios em canais cuja audiência é de maioria infantil. O Cartoon Network não respondeu. 

O MPE-SP recorre ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a normas do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e do Código de Defesa do Consumidor (CDC) para fundamentar a petição. 

No pedido de liminar, requer à Justiça que o Google, responsável pelo Youtube, remova os vídeos e adote medidas que impeçam a “monetização de vídeos violadores de direitos infantojuvenil”, além de pagar “danos morais”.

Segundo o documento, é “inegável” o prejuízo da prática ao público, que se torna “receptor de publicidade disfarçada de programação de entretenimento”, o que configura “comunicação mercadológica abusiva”.

Ingenuidade das crianças

Para o Instituo Alana, a publicidade é abusiva por se aproveitar da ingenuidade das crianças. “Pelo fato de a maioria das crianças acreditar no que ouve e vê, ela também acredita que o serviço anunciado vai realmente proporcionar-lhe os benefícios e os prazeres que a publicidade promete, mesmo que se trate de algo absolutamente irreal e impossível”, diz, em nota.

Segundo o instituto, crianças em torno dos quatro anos não seriam capazes de entender quando há a interrupção do programa e entra um intervalo comercial. E só aos 12 anos teriam condição de compreender o caráter persuasivo da publicidade.

Os responsáveis por Julia negam irregularidades e se dizem preocupados com o impacto da repercussão para a garota.

 — É uma situação revoltante porque estão imputando à minha filha um delito que ela não cometeu, foi tudo legal. Ela não consegue entender por que está sendo exposta — afirmou à Agência Estado o engenheiro eletrônico Dreyfus Silva, de 42 anos, o pai da youtuber. 

Para o MPE-SP, a estratégia da fabricante serviria para estimular o consumo por parte das crianças, grupo considerado vulnerável. “A informação de que se trata de promoção paga e de que o patrocínio da campanha era daquela empresa aparecem de forma não destacada”, grifou na petição o promotor Eduardo Dias de Souza Ferreira. “Ambos podem passar despercebidos para um adulto, quanto mais por uma criança.”

Já a família de Julia alega que a campanha é uma “publicidade clara” — e não velada — e representaria menos de 10% do conteúdo do canal. Também diz ter comprado todos os brinquedos exibidos no Youtube, mesmo os da Mattel. 

— Os outros vídeos são conteúdos editoriais. A intenção sempre foi mostrar o que Julia gosta de fazer. Nunca foi estimular o consumo — afirma a mãe e advogada Paula Queiroz, de 40 anos.

Os pais argumentam que o material publicitário não foi veiculado na plataforma Youtube Kids, estaria sinalizado com “todas as ferramentas” disponíveis na rede social e tinha mecanismos para evitar que crianças conseguissem participar sem anuência dos pais. 

— O concurso exigia que o responsável preenchesse um formulário com dados, inclusive CPF — diz Paula.

Segundo a família, a série alvo do MPE-SP foi gravada em São José dos Campos, onde eles moravam na época. 

— Havia um alvará da Justiça permitindo que Julia fizesse a publicidade — diz Silva. 

Há cerca de dois anos, a youtuber mirim mora em Quebec, no Canadá, onde estuda em tempo integral. Ela cursa o equivalente ao 9.º ano do sistema brasileiro e foi premiada por manter média global acima de 90%. ê fluente em inglês e francês e publicou três livros — um deles em Portugal. 

— O canal no Youtube não atrapalha, ela grava de duas a três vezes por semana, quando tem tempo, mas o estudo é prioridade —diz a mãe.

Para os pais, falta clareza à regulamentação e restrições legais sobre publicidade infantil no Brasil. 

— Acho justo abrir um debate sobre o tema, o que não é correto é perseguir uma criança —afirma Silva. 

Ex-presidente da Comissão de Direito InfantoJuvenil da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ricardo Cabezón diz que esta é a maior ação sobre o tema que já tomou conhecimento. 

— Como estratégia, o Ministério Público precisa mirar no Youtube porque, muitas vezes, os canais não têm contato dos responsáveis. A questão é que, por problemas de regulamentação, esses processos sofrem questionamentos técnicos na Justiça — afirma.


+ Justiça