HTLV-1: o que é o vírus pouco conhecido que já atinge 800 mil brasileiros

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 3 de janeiro de 2019 às 12:54
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 19:17
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Doença decorrente também é bastante desconhecida e pode impossibilitar portadores de andar

Quando era criança, a
estudante de Teologia Erika Grace Piva Archanjo, hoje com 31 anos, tropeçava e
caía com frequência, acidentes que ela e sua família atribuíam a algum problema
ortopédico. Ela nunca foi ao médico por causa disso. Só fez isso, aos 25 anos,
depois que sentiu fraqueza nas pernas e percebeu que para se levantar, após se
abaixar, precisava apoiar as mãos no chão.

O diagnóstico só veio um ano depois, quando seu primeiro
filho tinha um ano: Erika sofria de paraparesia espástica tropical, que, ao
longo do tempo, vai paralisando e incapacitando as pessoas.

É uma doença pouco conhecida, causada por um vírus
também pouco famoso, o vírus linfotrópico de células-T humanas (HTLV-1, da
sigla em inglês para human T-cell lymphotropic vírus), do qual o Brasil é um
dos campeões mundiais em número absoluto de portadores, com pelo menos 800 mil
pessoas infectadas – número que pode chegar a 2,5 milhões, dependendo da fonte.
No mundo, estima-se algo entre 10 e 15 milhões de portadores.

Ele faz parte da família dos retrovírus humanos (Retroviridae) – foi o primeiro desse grupo a ser
descoberto, em 1980 – a mesma do seu primo mais popular, o HIV, causador da
aids. “Ele se integra no nosso DNA e pode ser transmitido”, explica
Jorge Casseb, médico do Ambulatório de HTLV e professor do Instituto de Medicina
Tropical da Universidade de São Paulo (USP).

Sintomas e consequências

Normalmente, o vírus fica em repouso, integrado ao DNA dos seus
portadores. Mas em 5 a 10% das pessoas infectadas, ele pode causar duas
doenças: a própria mielopatia associada ao HTLV-1 ou paraparesia espástica
tropical (HAM/TSP, do nome em inglês HTLV-1-associated mielopathy/tropical
spastic paraparesis), e a leucemia linfoma de células T do adulto (ATLL – adult
T-cell leukemia/lymphoma), um tipo de câncer do sangue bastante agressivo, que
leva o paciente à morte em dois anos. “Com o tempo, o paciente pode ficar incapacitado de andar”,
diz Adele Caterino de Araujo, pesquisadora científica do Centro de Imunologia,
do Instituto Adolfo Lutz. “Ao longo do tempo, podem
surgir sintomas como lombalgia (dor lombar), fadiga, disfunção urinária e
sexual (disfunção erétil, perda da libido), cãibras, constipação intestinal,
mialgia (dor muscular), além de uveítes (inflamação nos olhos), dermatites e de
ordem emocional, como ansiedade e depressão.”

Erika
sabe bem do que Adele está falando. “Tive uma fase de incontinência e, por
isso, mal saia de casa e quando o fazia tomava um remédio, que me ajudava, mas
me deixava ‘grogue'”, conta. “Depois, iniciei um tratamento com a
pulsoterapia (terapia baseada em doses elevadas de corticoides por via
endovenosa, durante um curto período de tempo). Fazia três vezes por mês, indo
e voltando do hospital. Não se sabe o que é pior, se as dores incontroláveis
que o HTLV causa ou a reação ao remédio.”

Mas não é só isso. “Além
da fraqueza, incontinência urinária e dores, o lado emocional fica extremante
fragilizado, muito choro, muita tristeza, muita raiva”, relata Erika.
“Eu particularmente fiquei descontrolada, eu precisava achar um culpado
para esse mal. Briguei com meu pai, pois ele e minha mãe usavam drogas e
contraíram aids (ela morreu há 24 anos), afinal ele era coautor desse ‘crime’,
já que foi deles que devo ter pego o HTLV-1. Além disso, senti medo de perder
meu marido, afinal quem ficaria com uma louca em cadeira de rodas? As pessoas
de um modo geral me irritavam profundamente, fiquei revoltada e
arrogante.”

Segundo Adele, o HTLV-1 age
infectando preferencialmente os linfócitos T CD4+ (principais células do
sistema imunológico) e nelas pode permanecer inserido em seu DNA na forma de
provírus (estado latente em que se encontra o RNA do retrovírus após ter sido
incorporado ao DNA da célula hospedeira). “Ele necessita de contato célula
a célula para a sua propagação, de tal modo que a transmissão por partículas
livres no sangue é praticamente inexistente ou ineficiente”, explica.
“Como a carga proviral de HTLV-1 é baixa, a proliferação das células
infectadas é quem promove a disseminação do vírus no organismo.” 

Sintomas que demoram a se manifestar

O que pode demorar a ocorrer. O tempo médio estimado entre a
infecção por HTLV-1 e o desenvolvimento de doença é longo e geralmente ocorre
por volta da quarta década de vida, podendo o indivíduo infectado permanecer
apenas como portador assintomático. “Há relatos de que cerca de 5% dos
infectados desenvolvem doenças, mas este dado parece estar subestimado, uma vez
que mais de 20% dos portadores no Brasil desenvolvem algum quadro associado a
ele”, ressalva Adele.

Apesar desses números e dos
problemas que causa às pessoas que desenvolvem doenças, o HTLV-1 recebe pouca
atenção no Brasil e mesmo no mundo. Os médicos e pesquisadores que trabalham
com ele reclamam da falta de estrutura e da ausência de ações específicas
contra o vírus.

Não existe um programa
nacional para tentar controlá-lo ou erradicá-lo. “Não há cura para as
doenças que causa, mas elas não têm tido a devida atenção, e sequer constam da
lista de doenças consideradas negligenciadas pela Organização Mundial da Saúde
(OMS)”, diz Adele.

O fato de a grande maioria dos
pacientes ser assintomática é uma das possíveis razões pelas quais o HTLV-1 não
recebe a atenção devida. Como evolutivamente falando, é um vírus antigo, ele
está bem adaptado e a maioria das pessoas não desenvolve as complicações mais
graves, pois o próprio sistema imunológico do paciente o controla.

Na
maioria dos casos, os portadores nem percebem nem sabem que estão infectados. “Eles
têm uma dificuldade de subir escada, uma dor, mas quem vai no médico por causa
disso?”, indaga Casseb. “Quando alguém vai, faz raio-X, tomografia, ressonância
magnética e geralmente os resultados são normais. Acaba acontecendo que a
pessoa passa sete, às vezes até dez anos, para descobrir a causa desses
sintomas.” 

Desconhecimento também no atendimento

O desconhecimento do HTLV-1 por parte dos próprios
profissionais da saúde é outro problema que contribui para o largo intervalo
entre o início dos sintomas e o diagnóstico. 

Como exemplo, Casseb relata o caso
de uma paciente do interior de São Paulo que passou por 29 médicos até
encontrar um que tinha sido residente no Ambulatório de HTLV do Hospital Emílio
Ribas e estava familiarizado com o vírus. “Ele pediu a sorologia (exame
de laboratório realizado para comprovar a presença de anticorpos no sangue),
que custa uns 3 reais, e deu positivo”, conta. “Mas se você não
pensar e não pedir o exame, não tem como identificar a infecção causada por
ele.”

Com o
objetivo de informar e mobilizar a sociedade e o poder público para o
significado da infecção ocasionada pelo primeiro retrovírus humano descrito, a
Associação Internacional de Retrovirologia (IRVA, na sigla em inglês de
International Retrovirology Association) instituiu 10 de novembro como o Dia
Mundial do HTLV.

Além
disso, em maio deste ano médicos, pesquisadores e representantes de pacientes
de todo o mundo enviaram uma carta aberta à OMS solicitando a criação de
estratégias para erradicar o vírus, entre as quais mais testagens e maior
divulgação dele e das doenças a ele associadas, tanto entre profissionais da
saúde como entre o público em geral.

Não é
algo impossível nem tão difícil de se conseguir, pois as formas de transmissão
do vírus são bem conhecidas. São três: parenteral (por transfusão sanguínea e
compartilhamento de seringas e agulhas contaminadas durante o uso de drogas
injetáveis lícitas e ilícitas), sexual (durante o sexo sem preservativo) e
vertical (pelo aleitamento materno prolongado, durante a gestação e no momento
do parto). “Atualmente,
a primeira via de disseminação diminuiu consideravelmente no Brasil, pois desde
1993 tornou-se obrigatória a sorologia para HTLV em todos os bancos de sangue
do país”, informa Adele. 

A importância das campanhas

Um exemplo de estratégia bem sucedida contra a transmissão do
vírus vem da cidade de Nagasaki, no Japão. Lá foram adotadas medidas de testar
as gestantes e orientar as mães portadoras do HTLV-1 a não amamentar os seus
filhos, ou a fazê-lo por períodos mais curtos – não mais do que seis meses. Com
isso, foi possível reduzir a prevalência da doença de 20,3% para 2,5% em 20
anos.

Para Marina Lobato Martins,
gerente de Desenvolvimento Técnico Científico, da Fundação Centro de
Hematologia e Hemoterapia de Minas Gerais (Hemominas), vinculada à Secretaria
de Estado de Saúde de Minas Gerais, o Brasil precisa tomar medidas para que o
número de portadores do HTLV-1 não continue a crescer. “Toda
doença transmissível não controlada pode aumentar com o tempo, pois as pessoas
infectadas continuarão transmitindo o vírus para outras”, alerta.

De acordo com ela, isso
acontece especialmente para infecções transmitidas sexualmente. “É preciso
que o HTLV entre nas campanhas públicas de controle das infecções
transmissíveis por esta forma, que se disponibilizem testes diagnósticos para
atendimento à população e que sejam criados centros de referência para avaliação
e orientação do portador do vírus e para tratamento das pessoas doentes”,
recomenda.

Apesar
dos problemas que enfrenta, Erika mostra otimismo. “Não é fácil, mas aos
poucos estamos avançando”, acredita. “A
informação está chegando às pessoas e, mesmo que por poucos, estamos sendo
vistos. Hoje já não me sinto à margem da sociedade como em 2013, na primeira
pulsoterapia, quando era vergonha dizer que aquilo era por causa de um vírus.
Ainda falta muito para uma situação ideal, pois estamos de frente para um
enorme problema de saúde pública. Essa doença, na maioria das vezes, não mata
com rapidez, mas acaba fazendo a pessoa definhar. Então nadar contra essa maré
gigante ainda é a melhor escolha.”


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