Conhece o caruru? Comida de santo criada nos terreiros ganhou as mesas brasileiras

  • Rosana Ribeiro
  • Publicado em 27 de setembro de 2023 às 12:30
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Preparado com quiabo e dendê, receita nasceu dentro dos terreiros de Candomblé. E assim como outras Comidas de Santo, acabou sendo incorporado à culinária brasileira

Caruru é um prato típico feito com quiabo e acompanhamentos – foto Freepik

 

Do quintal comprido da casa branca de janelas azuis, vinha uma cantoria ritmada. “São Cosme mandou fazer duas camisinha azul/ No dia da festa dele, São Cosme quer caruru”, repetiam incansavelmente as mulheres sentadas ao redor de uma mesa de madeira, enquanto cortavam o quiabo.

Bacias imensas recheadas desse ingrediente de origem africana que ganhou o coração dos brasileiros.

Dizem alguns que a contagem passava de 5.000 quiabos. Tudo para atender aos convidados, que não paravam de chegar.

Vez ou outra era possível reconhecer alguns famosos como Regina Casé e Gilberto Gil. Gente que veio de longe até Santo Amaro da Purificação para beijar a mão de Claudionor Vianna Telles Velloso, guardiã dos costumes do Recôncavo Baiano. O ano era 2007 e a anfitriã comemorava 100 anos.

Claudionor entrou para a história como Dona Canô, defensora do dendê, das palavras e das festas populares brasileiras, mãe de oito filhos, incluindo os cantores Caetano Veloso e Maria Bethânia.

Nascida em 16 de setembro, a matriarca da família Velloso (se escreve originalmente com dois l) fazia questão de comemorar seu aniversário com um grande caruru, em homenagem a São Cosme e Damião.

“A cada ano a festa aumentava um pouco mais. Já de véspera começa a corta do quiabo. E era tanta gente que ficava até difícil de passar com os pratos para servir”, lembra a escritora Mabel Velloso, uma das filhas de Dona Canô.

Dentre dos mais de 30 livros por ela publicados, está “O Sal é um dom – Receitas de Dona Canô”. E lá está, na página 107, o caruru – também na versão preparada com folhas de língua-de-vaca, taioba ou espinafre.

“Essas receitas de família contam um pouco da nossa história de vida. Lembro da minha mãe sempre verificando se estava tudo certo na cozinha. Era quase um ritual e essas lembranças entranham na gente”, diz Mabel.

E o ritual não era só no preparo, mas também na hora de servir. Primeiro vinham as crianças. Depois, os adultos iam servindo um pouquinho de cada receita – vatapá e feijão fradinho nunca faltavam – em montinhos um ao lado do outro. Para acompanhar, uma boa cachacinha.

A festa perdeu seu ritmo desde que Dona Canô morreu, em 2012. Agora, Rodrigo, o filho mais velho entre os homens do clã Velloso, foi quem tomou à frente do preparo do caruru. “Mas é uma festa pequena, só para a família”, completa Mabel.

Mas o que é o caruru?

Segundo dona Madá, mãe do músico Carlinhos Brown, o caruru é uma receita preparada com quiabo picadinho, camarão seco, cebola, amendoim, castanha de caju e azeite de dendê.

“Tem a mesma base do vatapá”, resume. No entanto, é preciso aqui explicar que existe uma diferença entre o caruru e o caruru de Cosme e Damião, que nasceu dentro dos terreiros de candomblé do Nordeste.

“O Caruru de Cosme é uma oferenda a diversos Orixás. Aqui no Brasil, com o sincretismo religioso, acabou que os santos gêmeos, nascidos no Oriente Médio, se assemelham ao Ibeji da cultura iorubá”, afirma o pesquisador José Carmo, sócio do restaurante Casa de Ieda, em São Paulo.

Durante o período de setembro, a casa oferece o Caruru de Cosme que, além do preparo com o quiabo – que é uma oferenda a Xangô – vem com outros pratos em homenagem a diversos orixás, como é o caso do vatapá (para Oxum), acarajé (para Iansã) e acaçá ou milho branco (para Oxalá).

Comida de Santo

Caruru é oferecido no dia de Cosme e Damião e também ao orixá Xangô – foto Papo de Galo

 

Nas religiões afro-brasileiras, existem várias oferendas destinadas aos orixás que estão incluídas dentro da chamada Comida de Santo.

Segundo o livro “Culinária Brasileira, Muito Prazer”, de Roberta Malta Saldanha, “ao prepará-las, deve-se respeitar alguns preceitos: o mel é proibido a Oxóssi, o carneiro não pode sequer entrar e uma casa consagrada a Iansã, o azeite de dendê nunca deve ser oferecido a Oxalá.”

Muitos desses pratos, no entanto, deixaram o terreiro e acabaram sendo incorporados a culinária brasileira. Como é o caso do caruru.

Viva Cosme e Damião!

Segundo a tradição, Cosme e Damião eram médicos e viveram no século 3. Ambos teriam sido martirizados na Síria durante as perseguições do imperador Diocleciano. Depois de mortos, viraram os protetores dos médicos e das crianças que sofrem violência.

No Brasil, pelo sincretismo religioso, os santos católicos acabaram sendo assemelhados a Ibeji, orixá dos iorubás que também protege as crianças e cuida para que o tempo não amargue suas vidas.

A festa de São Cosme e Damião é comemorada no dia 27 de setembro. Em alguns lugares do Brasil, são distribuídos doces em saquinhos de papel para a criançada. Já em outras regiões, o caruru é servido para quem quiser chegar.

“Os adultos cantam músicas dos rituais dos santos, enquanto as portas são abertas para que as pessoas entrem, em fila, para receber seu prato, e assim todos confraternizam”.

“Para essa festa não precisa de convite: quem quiser pode vir buscar o seu prato e participar”, afirmam Tereza Paim e Sonia Robatto, no livro “Na Mesa Baiana – Receitas, histórias, temperos e espírito tipicamente baianos”.

*Informações CNN


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