Conheça o macarrão mais raro do mundo e que só três mulheres sabem fazer

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 1 de abril de 2018 às 22:52
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:39
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Receita tem mais de 300 anos e corre o risco de desaparecer da tradição culinária por sua complexidade

Longe do famoso mar
azul-turquesa que cerca a ilha, o interior da Sardenha, na Itália, é um
labirinto retorcido de profundos precipícios e maciços impenetráveis que
escondem algumas das mais antigas tradições da Europa.

Os habitantes daqui falam o sardo, o idioma moderno mais próximo
do latim. Debaixo de véus bordados, velhinhas observam com cautela os
forasteiros. E em um modesto apartamento na vila de Nuoro, uma franzina senhora
de 62 anos, chamada Paola Abraini, fabrica o macarrão mais raro do mundo, o su filindeu.

Apenas duas outras mulheres em todo o planeta ainda sabem como
fabricar a massa: a sobrinha de Abraini e a cunhada dela, que também moram
nesta cidade na encosta do Monte Ortobene.

Ninguém se lembra como ou por que as mulheres de Nuoro começaram
a preparar o su filindeu (que
significa “os fios de Deus”).

Mas há mais de 300 anos, a receita e a técnica de preparo só
foram ensinadas pelas mulheres da família Abraini – cada uma guardando os
segredos a sete chaves até mostrar a suas filhas.

Não que não haja outras pessoas de olho. No ano passado, uma
equipe de engenheiros da Barilla, uma das maiores fabricantes de massa da
Itália, vistou Abraini para ver se poderiam reproduzir a técnica dela com uma
máquina. Não funcionou.

Este ano, ela recebeu o presidente da ONG Slow Food
International, Carlo Petrini, encantado pelos rumores de um macarrão secreto. E
ainda abriu as portas de seu apartamento para o festejado chef britânico Jamie
Oliver, que implorou para que Abraini o ensinasse a preparar a massa.

Depois de duas horas tentando, sem sucesso, Oliver simplesmente
desistiu. “Eu faço massa há 20 anos e nunca vi nada assim”, afirmou.

A cozinheira se diverte com tudo isso e diz que o segredo pode
ser visto por qualquer um: suas mãos.

Para fazer o su
filindeu, ela puxa e dobra uma massa de semolina em 256 tiras perfeitamente
idênticas, usando as pontas dos dedos. Em seguida, estica os finíssimos fios
sobre uma forma circular, em um intricado padrão com três camadas.

Tudo é tão difícil e toma tanto tempo que nos últimos 200 anos
esse prato sagrado só era sido servido para os fiéis que completassem uma
peregrinação de 33 quilômetros, a pé ou a cavalo, de Nuoro à vila de Lula
durante as festas de São Francisco, que ocorrem duas vezes por ano.

Quando fui convidado à casa de Abraini, em outubro, faltavam
três dias para as festas. A cozinheira tinha acabado de fabricar su filindeu suficiente
para alimentar os 1,5 mil peregrinos esperados para a comemoração.

Ela trabalhou cinco horas por dia, todos os dias, durante um mês
para fazer 50 quilos de massa. Para as festas de maio – ainda maiores – ela
deve preparar uma quantidade quatro vezes maior.

Três ingredientes. E só.

“Uso apenas três ingredientes: semolina de trigo, água e
sal”, conta Abraini. “Mas como tudo é feito à mão, o componente mais
importante é o suor.”

A massa é trabalhada vigorosamente até obter uma consistência de
massinha de modelar. Ela então separa tudo em pequenas partes e forma pequenos
cilindros. Chega, então, a parte mais difícil, que a cozinheira chama de
“entender a massa com as mãos”. “É algo que uma pessoa leva anos
para perceber, um equilíbrio perfeito entre cada ingrediente. Mas quando você
consegue, algo mágico acontece”, diz.

Depois de esticada e dobrada em oito sequências, a massa obtém a
espessura equivalente à metade de um fio de macarrão “cabelo de
anjo”.

Após serem dispostos como em uma base circular, em três camadas,
os fios são levados para secar ao sol. Depois de horas, a massa seca mais
parece uma trama de renda fininha.

O macarrão então é embalado e levado para a festa, onde será
fervido em um caldo de carne de ovelha e servido como uma sopa, com queijo
pecorino ralado, para os peregrinos.

Mas depois de mais de 300 anos dentro da mesma linhagem
matriarcal da família, os fios de Deus devem precisar de um milagre se quiserem
sobreviver para as próximas gerações.

Apenas uma das duas filhas de Abraini conhece a técnica, mas não
tem a mesma paixão e a mesma paciência da mãe.

Nenhuma das moças tem filhas. As outras duas mulheres que ainda
ajudam a cozinheira têm mais de 50 anos e ainda não conseguiram convencer suas
próprias filhas a aderir à tradição. “O su
filindeu é uma das comidas com maior risco de extinção, muito porque é
tão difícil de fazer”, explica Raffaella Ponzio, coordenadora da
iniciativa Arca do Sabor, da Slow Food International, que pretende classificar
e preservar as tradições culinárias ameaçadas em todo o mundo.

Por causa disso, Abraini quebrou a tradição familiar e tentou
ensinar outras jovens de Nuoro a preparar a massa. “Mas não deu muito
certo”, conta. “Quando elas viam como fazer, diziam ‘dá muito
trabalho’ e não voltavam mais.”

Mas a cozinheira se recusa a deixar a massa desaparecer, e
adotou a missão de espalhar o su
filindeu pelo mundo.

Recentemente, ela foi filmada no preparo pela equipe da revista
de gastronomia Gambero Rosso, uma
das maiores da Itália. E agora começou a fazer o macarrão para três
restaurantes da Sardenha – permitindo que não peregrinos experimentem o prato
pela primeira vez.


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