Bisneta de Monteiro Lobato quer apagar o racismo de sua obra com novas edições

  • Rosana Ribeiro
  • Publicado em 2 de dezembro de 2020 às 06:01
  • Modificado em 11 de janeiro de 2021 às 10:12
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​Um dos cânones da literatura infantil brasileira completa, neste mês de dezembro, cem anos

Um dos cânones da literatura infantil brasileira completa, neste mês de dezembro, cem anos. 

Escrito por Monteiro Lobato, “A Menina do Narizinho Arrebitado” introduziu o universo do “Sítio do Picapau Amarelo” e agora suscita não só comemorações, mas também debates fervorosos em torno do autor, considerado racista por alguns leitores e estudiosos, e uma reedição de sua obra, adaptada por sua própria bisneta, Cleo Monteiro Lobato.

Adaptada porque esta não se trata de uma reimpressão do texto original, com adendos e novo prefácio, como já ocorreu em outras reedições, mas de uma reformulação da obra, com exclusões e alterações de trechos e personagens sendo representados de maneiras diferentes, menos problemáticas.

Tudo para entrar em sintonia com as críticas de que o escritor paulista teria maculado a inocência das aventuras da boneca Emília ao incutir concepções preconceituosas e estereotipadas em seus livros.

Tia Nastácia, a mulher negra que trabalha no sítio, “trepa que nem uma macaca de carvão” em determinada passagem do original, por exemplo. 

Mas não mais nesta reedição, que vem na esteira de uma série de celebrações do centenário e é atrelada à publicação de uma tradução da obra para o inglês.

“Eu acho que há passagens problemáticas para quem lê os livros hoje em dia. A gente queria uma versão atualizada, cujo teor fosse compatível com os valores sociais contemporâneos, mas que mantivesse o estilo do Lobato”, diz Cleo, a bisneta do autor. 

“Eu queria que essa versão provocasse essa discussão que provocou, que não é sobre o Lobato, mas sobre o racismo estrutural no Brasil. Essa é a intenção.”

Cleo refuta o termo censura ao falar das alterações feitas à obra e lembra que o bisavô foi responsável por traduzir diversos clássicos infantis para o português, como “Alice no País das Maravilhas”, mas não sem os adaptar, de forma incisiva, para o público brasileiro.

“A obra hoje está em domínio público. Nós não a desvirtuamos, porque a original continua lá, existindo e disponível”, diz ela. 

“Se eu tenho a possibilidade de me posicionar de maneira positiva [por meio dos livros], eu escolho a mudança.”

A ideia de tomar essa liberdade criativa veio depois que Cleo notou diversos conhecidos ou fãs de Monteiro Lobato que tinham dificuldade em ler a obra para crianças, já que, vez ou outra, era preciso interromper a narrativa para explicar termos e representações ofensivas –principalmente aquelas direcionadas a Tia Nastácia.

Mas, mesmo assumindo que alguns aspectos na obra não estão em concordância com os tempos atuais, Cleo é assertiva ao dizer que o bisavô não era racista e que os trechos problemáticos de sua obra também não o são. 

É um posicionamento polêmico e complicado, ela assume, afirmando que é preciso ter um entendimento total da vida e da obra de Monteiro Lobato para opinar sobre o assunto.

“O que eu noto é que quem leu tudo, luta fervorosamente contra as acusações de racismo”.

“Quem pega uma carta, um livro e analisa por um prisma estreito, enxerga o Lobato oposto”, diz Cleo, sobre documentos escritos pelo autor em que ele faz menção positiva à Ku Klux Klan e às ideias eugenistas de seu tempo.

Monteiro Lobato não é o primeiro –e nem será o último– artista com obras submetidas a intervenções cirúrgicas. 

Se no caso do pai de Emília o procedimento parece invasivo demais, em outros ele é mais comedido.

No audiovisual, avisos de que as ideias e representações observadas em alguns filmes são datadas, discriminatórias e que refletem o pensamento predominante de uma outra época se tornaram frequentes, diante do ressurgimento de obras antigas em plataformas de streaming.

É esse tipo de mea-culpa que acompanha, por exemplo, diversas animações disponíveis na plataforma Disney+, como “Peter Pan” e “A Dama e o Vagabundo”, e o clássico “… E o Vento Levou”, agora no catálogo do HBO Max, hoje indisponível no Brasil.

“Eu entendo a decisão tomada pela família, mas a minha posição seria de que vale a pena fazer, no máximo, alterações ortográficas, em relação à língua, e manter a obra em si tal qual ela está”, diz Mário Augusto Medeiros da Silva, professor de ciências sociais da Unicamp e que se debruça sobre a área da literatura.

“Que o leitor seja beneficiado com uma nota prévia, um prefácio, um texto analítico para que faça suas próprias ponderações, embora eu entenda que a adaptação é uma saída que ela [Cleo Monteiro Lobato] encontrou para se adequar aos novos tempos.”

Segundo o acadêmico, é importante compreender Monteiro Lobato inserido no contexto em que viveu, também enquanto cidadão e não só como escritor. Segundo ele, limpar esse aspecto de sua vida e obra é uma opção da família, mas que ofusca a trajetória e as contradições do autor.

“Isso não apaga o editor, o homem preso pelo Estado Novo, o nacionalista que lutou pela Campanha do Petróleo, o criador de uma literatura infantil no Brasil. Mas também faz parte dele ser pensado como um autor que não foi tão além de seu tempo, um tempo racista. Nenhum artista deve ser tratado de maneira sagrada, todos estão envolvidos com questões de seu tempo, e é saudável que os leitores saibam disso.”

“Eu não defendo censurar e também não concordo com o apagamento de sua obra –e mesmo essa limpeza dessa nova versão pode ser lida como apagamento, o que precisa ser debatido. Mas uma atitude antirracista talvez mais adequada seria inserir um estudo crítico a respeito da obra e, então, deixar para o leitor tomar suas posições”, conclui.

*Conteúdo FOLHAPRESS

*Crédito da foto: Revista Veja


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