Biólogos criam analgésico com substância extraída de aranha caranguejeira

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 8 de outubro de 2018 às 13:20
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 19:04
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Pesquisadora de Ribeirão Preto teve a sua pesquisa premiada no mês de agosto

Uma substância
extraída da hemolinfa (fluído que tem função semelhante a do sangue dos
vertebrados) de um aranha caranguejeira poderá dar origem a um analgésico para
tratar dor neuropática (causada por lesões ou doença do sistema nervoso
central) e atenuar problemas associadas a ela – depressão, falhas cognitivas ou
de memória e atenção, por exemplo.

A pesquisa rendeu a sua autora, a bióloga Ana
Carolina Medeiros, o Prêmio Jovem Neurocientista 2018, concedido no último
Congresso da Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento (SBNeC),
realizado em agosto.

A jovem pesquisadora
foi orientada em seu trabalho pelo professor Renato Leonardo de Freitas,
coordenador do Laboratório de Dor e Emoções do Departamento de Cirurgia e
Anatomia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FMRP-USP).

De acordo com ele, a
dor crônica é um dos principais problemas de saúde, afetando mais de 30% dos
adultos. “Ela está presente em quase todas as patologias”, diz.

A dor neuropática,
por sua vez, é um problema comum e faz parte de várias síndromes neurológicas,
representando 25% dos pacientes atendidos nas grandes clínicas de dor. “No
estudo de Ana Carolina, mostramos, em modelos animais, que esse tipo de dor
pode causar depressão, e que a migalina, administrada em uma região do
neocórtex, é capaz de atenuar os dois problemas”, explica o professor.

Migalina é a
substância retirada da aranha que foi estudada por Ana Carolina.

Ela foi descoberta pelo pesquisador Pedro Ismael da
Silva Júnior, do Instituto Butantan, durante seu doutorado, concluído no ano
2000. “Na época eu estava estudando o sistema imune inato de aracnídeos,
especificamente da aranha caranguejeira Acanthoscurria
gomesiana
“, conta. “Eu buscava moléculas com atividade
antimicrobiana (antibiótica) no sangue (hemolinfa) dessa espécie.”

Silva Júnior encontrou
e isolou quatro moléculas com essa propriedade, entre elas a migalina.
“Descobrimos que essa substância provavelmente está envolvida na defesa
imune dos aracnídeos, que vivem em ambientes repletos de microrganismos e
passam por uma fase crítica para crescer”, explica. “Esses
invertebrados possuem exoesqueleto (esqueleto externo) e, para crescer,
precisam sair dele, ou seja, trocá-lo de tempos em tempo, em um processo
chamado ecdise.”

Nesse momento, eles
estão sujeitos à perda de hemolinfa e a serem atacadas por microrganismos. “Essas
moléculas antimicrobianas, como a migalina, desempenham um importante papel
nesse momento”, diz Silva Júnior. “Tudo indica também que ela possa
estar envolvida ainda na cicatrização nesses animais, ajudando na formação de
uma nova cutícula ou no reparo dela.”

A necessidade de uma
maior disponibilidade dessa molécula para pesquisas – e para seu eventual uso
para produção de novas drogas – o levou a estudar suas características e
sintetizá-las em laboratório.

Depois disso, devido à semelhança da migalina com
outras moléculas envolvidas com o sistema nervoso, Silva Júnior procurou o
pesquisador Wagner Ferreira dos Santos, da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da mesma instituição (FFCLRP-USP), e propôs uma parceria no estudo dessa
substância e de seu efeito sobre os seres humanos. “Ele e sua orientanda,
a Ana Carolina, e Freitas descobriram que ela também apresentava efeito
analgésico”, conta Silva Júnior.

Ana Carolina, por sua vez, diz que a
pesquisa buscou entender o efeito da migalina no sistema nervoso central em
relação à dor. “Nesse trabalho especificamente, avaliamos também o seu
efeito sobre a comorbidade (relação entre duas ou mais doenças) entre dor
neuropática crônica e depressão”, explica. “Como já era conhecida
essa relação de dor intensificando a depressão e vice-versa, procuramos então
investigar a ação da migalina sobre essa comorbidade quando microinjetada em
uma região do cérebro envolvida na elaboração de aspectos sensoriais e
cognitivos da dor, o córtex pré-frontal.”

De acordo com ela, a equipe conseguiu
demonstrar o efeito analgésico da migalina quando microinjetada no córtex
pré-frontal, além de seu efeito sobre a comorbidade, atenuando não apenas
sintomas decorrentes desse quadro, mas também comportamentos do tipo depressivo
associados a ele.

“Não podemos dizer que ela
apresenta efeito especificamente sobre o quadro depressivo, uma vez que apenas
estudamos este transtorno quando associado a dor neuropática cônica”,
reconhece.

Ou seja, Ana
Carolina diz que não pode afirmar que a migalina apresenta algum efeito
diretamente sobre a depressão, pois o objetivo do estudo foi investigar a
relação de comorbidade. “No entanto, tratamos a dor e vimos melhora nos
comportamentos do tipo depressivo”, diz. “Isso quando uma molécula
com ação farmacológica analgésica (migalina) é administrada em uma estrutura
cerebral associada a transtornos psiquiátricos e na cronificação da dor. Sendo
assim, por mais que a molécula apresente um potencial antidepressivo, o estudo
não investigou esse efeito de forma independente.”

Para que a migalina
possa dar origem a um novo analgésico serão necessárias, no entanto, mais
pesquisas. “O nosso é um estudo inicial, mas que se mostrou importante no
sentido de melhor entender o funcionamento dessa substância”, diz Ana
Carolina. “Também a coloca como uma molécula muito interessante para que
seja estudada mais profundamente como um possível medicamento.”

Freitas acrescenta
que essa pesquisa se insere em um contexto mais amplo de busca pelo
desenvolvimento de novas drogas a partir de substâncias naturais. “Os
aspectos econômicos e biotecnológicos de compostos que são derivados de
plantas, de venenos de animais, entre outros, vêm recebendo grande atenção da
comunidade científica, das indústrias farmacêuticas e do sistema de
saúde”, explica. “De fato, algumas dessas substâncias que podem ter
cunho medicinal possuem importância para as populações humanas, sendo
utilizadas em diversas patologias.”

De acordo com ele, o
fato de a migalina atenuar a dor e a depressão nos animais abre a possibilidade
de suas pesquisas serem aprofundadas.

Depois disso, a equipe poderá partir para novos
estudos, visando testes clínicos e o possível desenvolvimento de um novo
medicamento. “Vale salientar que os órgãos de fomento estaduais e federais
precisam continuar e, até mesmo, aumentar os investimentos em ciência e
tecnologia”, diz. “Nosso grupo é um exemplo de que, mesmo com poucos
recursos, pode-se trazer coisas novas, novas abordagens, novos conhecimentos e
até mesmo novos fármacos.”

Ele lembra que isso
seria muito importante, porque a dor crônica e neuropática é de difícil
tratamento e muitos dos medicamentos atuais ou não possuem efeito em atenuá-la
ou causam grandes e desagradáveis efeitos adversos. “Sendo assim, estudar
minuciosamente os possíveis efeitos analgésicos com novas abordagens e
substâncias pode nos oferecer alternativas para o tratamento”, diz.

“Mas são
necessários ainda estudos adicionais para ratificar (as descobertas) e para
propormos a migalina como um agente analgésico e antidepressivo em situações de
dor crônica. Contudo, demos o passo inicial, agora, novas estratégias de
investigações serão consideradas nos grupos de pesquisas, que colaboraram com
este estudo para darmos continuidade nessa pesquisa.”


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