ARCO DE FOGO A natureza da razão

  • Língua Portuguesa
  • Publicado em 12 de julho de 2019 às 19:45
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:20
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Arco de fogo é o nome de uma operação da polícia federal na Amazônia, deflagrada para autuar e prender madeireiros no meio da imensa floresta cerrada e serrada. É também o título da obra do Delegado Edson Geraldo de Souza e do repórter investigativo João Carlos Borda. Na nota dos autores, previnem: Esse é um livro para quem tem sangue frio. Um livro para quem tem estômago de ferro. Na apresentação, explicam: Essa é uma obra inspirada em fatos reais. O narrador, ao mergulhar na mente de pessoas “reais”, torna-os personagens ficcionais. Ele os vira ao avesso fato a fato, ao relatar, por exemplo, o episódio em que policiais precisavam atravessar o rio caudaloso sobre uma balsa sob uma tempestade, impiedosa, dirigindo um caminhão sem freio, carregado de madeira roubada. A correnteza aumenta, a carga escorrega, quase levando a balsa a pique. O único “pecado”, se é que se pode dizer isso, são as fotos em preto e branco. Coloridas, mergulhariam ainda mais o leitor no universo amazonense.

No início da leitura, o leitor se depara com uma sucessão de relatos sobre as operações da Polícia Federal (PF), do Instituto Chico Mendes de Biologia (ICMBIO) e do IBAMA (governo federal), como se os autores pretendessem redigir um diário de guerra, no entanto, à medida que a leitor avança, o relato cede lugar à análise do ser humano que habita cada policial. A maioria deles abandonou suas famílias para se embrenharem na floresta, enfrentando garimpeiros, grileiros, serralheiros e, pior, politiqueiros. O narrador nos remete a um fato deveras curioso: há homens que não vivem sem a adrenalina do combate permanente. Só ali se sentem verdadeiramente úteis. As notas de pé de página são esclarecedoras de fato.

Prender um carregamento de madeira não é apenas uma questão de exercer a autoridade, mas de legitimar a honra. O delegado Henrique que, pelo terceiro ano consecutivo, não comemora o aniversário de casamento com a esposa, é a síntese do homem cumpridor de seus deveres, mas também da impotência daquele que não tem como cortar os fios de uma teia que se espalha por todo país, cujo cordão umbilical habita Brasília. Busca saídas para cumprir seus deveres, porém esbarra nos documentos forjados pelos poderosos locais, estaduais e federais. Matar policiais é ato de bravura recompensado com caraminguás.

São evidentes os tentáculos ardilosos do poder político e econômico e até mesmo policiais. Usam os desvalidos para se perpetuarem no poder e se manterem à margem da lei. O narrador desvenda esse modus operandi. Usam pessoas miseráveis para sabotarem qualquer intervenção da polícia, do IBAMA e da ACMBIO na mata fechada. Advogados corruptos, a serviço dos donos de Santarém, Curuatinga, Uruará, Mucuxipi, dentre outros tantos aglomeramentos de pessoas, a que chamam de povoados, têm livre trânsito nos tribunais e delegacias para liberar as cargas apreendidas e seus burros de carga.

Alerta: “O importante é sempre descobrir o fluxo de madeira, que muda constantemente de lugar, conforme o esgotamento ou repressão. As apreensões e serrarias móveis causam grande prejuízo aos criminosos. Caso haja descontinuidade no mapeamento, há risco de demorar-se excessivamente na localização da ova fonte. As demandas podem vir de análise social por satélite ou de investigações da base. A extração atual, provavelmente, está migrando para a região de Curuatinga”. (pág. 68)

Os ativistas morrem antes de morrer, um policial também. A impressão é a de que vivem cotidianamente com uma bala prestes a entrar nas suas cabeças. As grandes empresas e os grandes fundos internacionais fazem do replantio de árvores um grande jogo de cena – diz o narrador. Tudo não passa de jogo político e econômico. Como deixa claro o delegado Henrique, constante narrador dos fatos, em 1ª pessoa, só há madeireiros e serrarias clandestinas, porque há compradores para a madeira. Essa prática se ramifica por grandes e médias cidades. Operações são constantemente deflagradas e o resultado parece ser cavar um buraco na areia. Na capa, a “guerra invisível no coração da Amazônia”, só é invisível, porque a desinformação interessa muita gente. A contracapa deixa bem claro: “No coração da Amazônia, uma batalha pela sobrevivência – de árvores e de homens. Para socorrer a floresta que sangra, uma corrida contra o tempo…”. Uma corrida contra a desinformação e contra a corrupção.

Combate-se o descalabro na Amazônia com um band aid, se muito. Deixa, nas entrelinhas, o narrador por vezes onisciente, que essa é a conclusão a que chegam todos os comandados do delegado. O narrador afirma que a floresta sangra, mas ainda pulsa na UTI. Os dilemas, os medos, as vitórias, a honra desmistificam a ideia de que todo policial é corrupto, contudo não lhes impõe a pecha de heróis. São homens que cumprem seu dever com dignidade, apesar da perda de companheiros e de amigos que não suportam lutar uma batalha que acreditam perdida. Henrique crê que é possível, pelo menos, minimizar.

João Carlos Borda é profissional que adora o perigo. Sua diversão nas férias é se enfiar nos buracos mais lúgubres do mundo em busca de aventuras e pesquisas, refém da adrenalina. Talvez isso se deva ao sangue do marinheiro que não sabia, mas nasceu jornalista. A prosa discorrente de Edson e João é um convite à leitura da obra e à reflexão. É um mergulho na Amazônia e também na alma humana. É tão profundo quanto o mergulho na floresta. Arco de Fogo é um convite ao prazer de ler. 


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