Professora da Unesp pede renda básica de cidadania como saída emergencial

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 25 de março de 2020 às 13:38
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 20:31
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Para além da remuneração oriunda do trabalho: a renda básica de cidadania – uma saída emergencial necessária.

Eliana dos Santos Alves Nogueira[1]

Depois de tantos séculos de estudos científicos, especialmente nas áreas de filosofia, sociologia e ciências jurídicas (sim, é verdade: filosofia, sociologia e direito são ciências),a existência humana é colocada em xeque por conta de um vírus que, infelizmente, tem ceifado milhares de vidas mundo afora. 

A globalização da economia ganha agora um novo significado, já que a escassez dos recursos estudados pela economia agora pode ser medido por um novo parâmetro: a escassez da capacidade humana em gerir a grave crise desencadeada pelo globalizar-se de um vírus. 

O bônus da globalização da economia com o amplo circular de bens, capitais e pessoas recebeu o ônus da globalização de um vírus que, tal qual as pessoas, os bens e capitais, não conhece fronteiras.

Dentro da ciência jurídica, temos um ramo que costuma, teimosamente, estudar as relações de trabalho. 

Pode causar estranheza a muitos, mas a ciência jurídica que atua de modo a interpretar e conhecer o que ocorre no âmbito das relações de trabalho, tão desvalorizada inclusive nos currículos acadêmicos, é chamada a manifestar-se nesse momento especial de crise, no qual as pessoas são instadas a permanecerem em casa para evitar a tragédia da disseminação do vírus COVID-19.

As primeiras recomendações dos órgãos de saúde foram no sentido da simplicidade das medidas de contenção, ou seja: lavem as mãos e fiquem em casa.

O pandemônio seguinte veio no sentido de que não seria possível que todos ficassem em casa, uma vez que sem trabalhadores a economia não “gira”. 

Poucos podem se dedicar ao teletrabalho e permanecerem em casa trabalhando e com a renda garantida.

Só para pensar na esmagadora maioria dos trabalhadores que ainda possuem alguma proteção oriunda da anotação do contrato de trabalho em carteira assinada, temos os que trabalham em linhas de produção dentro das indústrias cujas atividades não são consideradas essenciais e aqueles da área do comércio, além de todos os que estão empenhados na área do turismo. 

Para estes não é possível o teletrabalho. Temos visto que a suspensão de atividades nestas áreas tem significado, em vários casos, a redução dos salários (“negociada” ou imposta). 

No cenário frequente temos visto notícias de demissões em massa. Em um sistema legal trabalhista onde permanece a dispensa sem justa causa e sem condicionantes, nenhuma proteção existe para o trabalhador.

Os últimos anos levaram os estudiosos do direito do trabalho a se debruçarem sobre o trabalho oriundo da 4a Revolução Industrial, aquele realizado através das plataformas digitais e impregnado de todas as novidades que a tecnologia trouxe ao mundo do trabalho. 

Muitos estudiosos celebraram a “disruptura” da relação de subordinação,com a criação de um novo cenário trabalhista, onde os trabalhadores se transformaram em empreendedores de si próprios! 

Uma relação entre iguais, ouviu-se em larga escala. Desnecessária a mão reguladora do Estado (sim, em maiúscula).

O exemplo dos que operam, como motoristas, os aplicativos de “carona”, obrigados a permanecerem em casa, sem usuários a transportar em razão da ordem para que todos “fiquem em casa” nos dão pistas sobre a gravidade da questão. 

Os ex-empregados, agora trabalhadores “autônomos”, seguem sem previsão de ganho e sem qualquer garantia do mínimo para sua subsistência.

Acrescente-se a esses trabalhadores da nova economia “desintermediada”, aqui utilizados apenas como um singelo exemplo, os milhões de desempregados e trabalhadores “informais” que coexistem na nossa pátria mãe gentil. 

Para estes, não existe a opção do “fique em casa e proteja-se”. Proteger-se é uma palavra que não existe no horizonte dessas famílias. A desproteção é estrutural.

A Organização Internacional do Trabalho, em 1999, estabeleceu o conceito de trabalho decente, que consiste em promover oportunidades para que homens e mulheres obtenham trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas. 

O trabalho decente é condição fundamental para a superação da pobreza, redução das desigualdades sociais, garantia da governabilidade democrática e desenvolvimento sustentável.

A Organização das Nações Unidas, ao traçar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS 2030), estabelece em seu objetivo oitavo que promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos é um dos pilares para garantia do alcance dos objetivos ali previstos.

Qual a relação entre a garantia do desenvolvimento sustentável, trabalho decente e o momento atual? Todas essas questões tem como centro o ser humano.

A propagação do COVID-19 chama à reflexão para a delicadeza da vida humana. Ela não sobrevive em ambiente hostil. Não sobrevive ao vírus. Mas muito além do vírus atual, não sobrevive à pobreza, à falta de alimentação, à falta de saúde, à falta de higiene e à falta de atenção.

Os milhões de trabalhadores, aos quais não é dado o “luxo” de permanecer em casa para evitar a contaminação e morte (principalmente para o grupo de risco, mas não só), devem nos levar à reflexão sobre o atual modelo de garantia de subsistência centrado nos rendimentos do trabalho.

A equação da OIT e da ONU, fundada no trabalho decente para garantia do desenvolvimento sustentável, não é suficiente. Garantir o trabalho decente é fundamental, mas não basta na ausência de trabalho.

Tal sinaliza para a necessidade de irmos avante e além (parafraseando o Buzz Lightyear). E o único caminho possível é o do estabelecimento de um sistema de renda básica universal, que garanta a subsistência de todo indivíduo, independentemente de qualquer condicionante vinculado à atividade profissional.

No momento atual de combate ao vírus, garantir que as pessoas possam permanecer em casa (e essa é uma medida necessária) exige que seja pensada uma saída emergencial com a contribuição do Estado (aquele mesmo, com letra maiúscula). 

Os milhões de reais necessários para combate ao vírus ganharão escala bilionária se não investirmos na garantia das necessidades básicas para todos os seres humanos em situação de grave vulnerabilidade econômica.

E o vírus traz uma faceta muito interessante. Ele é circular. Não adianta que as pessoas fiquem em casa (os que tem rendimentos garantidos) se os demais permanecerem circulando – arriscando suas vidas e levando o vírus consigo. 

Afinal, o vírus não circula. As pessoas que o fazem. É preciso garantir que todos tenham o mesmo direito à preservação de sua saúde.

Coesão social, nesse momento, passa pela necessidade de estabelecimento de garantia mínima de sobrevivência para todos os cidadãos. Esse conceito passa por salvar inclusive a “economia”. 

Afinal, a ampla liberdade que sempre foi garantida aos “atores econômicos”, que agora apresenta sua face mais perversa, com a redução dos salários e demissões em massa, exige que medidas emergenciais sejam tomadas a fim de que aqueles seres humanos (sim, ainda eles), possam simplesmente continuar vivos para que, passada a pandemia, continuem trabalhando, consumindo e, enfim, garantindo a circulação de bens e serviços.

O Brasil possui ferramentas para implementação imediata da renda básica de cidadania, a partir dos cadastros existentes que garantem os parcos benefícios oriundos das cambaleantes políticas públicas que ainda sobrevivem.

A Constituição Federal, já no seu primeiro artigo, elenca como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (inciso III), enumerado antes da garantia do valor social do trabalho e da livre iniciativa (estampados apenas no inciso IV do mesmo dispositivo legal). 

Tal significa dizer que o legislador constituinte elegeu a garantia da vida humana (sem ela não há dignidade a preservar), antes da atenção às relações industriais (trabalho e livre iniciativa). 

Cabe agora ao legislador ordinário envidar todos os esforços legislativos para implantar medidas eficazes, calcadas na solidariedade social, a fim de preservar a vida humana.

A oportunidade que se apresenta no momento atual é de que seja construído um novo pacto social, ainda que emergencial. Dessa experiência será possível retirar lições para balizar a sociedade pós-pandemia.


[1] Doutora em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Università Sapienza de Roma/Itália.Professora de Direito da FCHS – UNESP/SP. 


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