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(O Boca do Inferno – direto dos castelos dos espertos)
O céu caiu. A tempestade afogou a cidade. O tornado varreu as ruas, os bueiros, os telhados, as pessoas. A água colérica não pode ser enjaulada. Correu pelo esgoto tal qual uma égua indomada. Com o punho cerrado, jogou a tampa para o céu, que logo desceu para o inferno. Matou mais um desavisado. Indomável, libertou-se do julgo do cimento. Tudo, que viu, carregou. Roubou vidas sem dó. Olhamos aturdidos, impotentes, indecentes na nossa mísera frente o mundo se desfazer. Nossos sonhos represados derreteram-se.
Mary, a mais brasileira das Mary, tropeçou na beirada do bueiro escondido, armadilha para pegar animais desavisados. Foi arrastada para o abismo. Caiu. Misturou-se aos excrementos. Quem visse, não saberia o que era quem: cocô pura gente; gente puro cocô. O fedor era o mesmo. Sentia fora, o que gestava dentro. Homens são sacos de merda. Onde está o prefeito? Onde está o governador? Encastelados, sem dor.
Mary, a mais brasileira das Mary, viveu uma experiência corporal. Descobriu o mais íntimo das gentes do Brasil, a parte que mais fede, além das atitudes comezinhas cotidianas. Sentiu o que os homens sabem, que o fedor o poder manda esconder debaixo da terra. Quando a natureza põe a nu, boiando, os excrementos, o povo se lembra de protestar. O que há dentro de cada um é exposto pela enxurrada abaixo que inunda ruas, represa-se em lojas e casas. Onde está o presidente da câmara? Onde está o governador? Encastelados, sem pudor.
Mary, a mais brasileira das Mary, viveu uma experiência visceral. Esfregou-se com bucha, água e sabão até esfolar a pele, para substituí-la por qualquer outra coisa. Sentia-se porca, vítima da porcaria humana. O fedor entranhou-se nas narinas. O inferno dos excrementos entranhou-se no cérebro e na alma. Sonhava com banquetes de cocô. Olhando dentro de si, viu que não era diferente. Os homens são sacos de merda. Onde está o presidente? Onde está o seu tutor? Onde está o prefeito? Onde está o governador?
Veio-lhe à mente uma série de porquês:
Bebemos água reciclada. Comemos carne de animais que chafurdam na própria bosta. As cozinhas de bares e restaurantes, dos hotéis e da casa da vovó reaproveitam tudo. O sabão esgota a natureza, quando concebido e também quando deteriorado. Os rios carregam coliformes fecais, que serão usados para aguar as hortaliças que comemos. O papel higiênico apenas macera a merda que será atirada no lixo, que virará chorume, que virará adubo. Será levado pela água, que o depositará no lençol.
Borbulhou na mente dela que ela não passava de um instrumento da natureza que a faz cumprir ciclos. Mesmo prendendo, não há saída, ora ou outra a natureza grita. Grita que está na hora de colocar para fora o que acumulou mastigado, triturado, arremessado no intestino pela boca voraz e os olhos famélicos. Os homens são sacos de merda em produção em profusão.
Mary quis fugir da Mary, quis fugir da adoção, obcecada que estava pela organização, para cair nos braços do Tio Sam. Trabalhou, então, em uma rede de fast-food, em que a ordem do superior era empanturrar os incautos, com o sanduíche requentado da noite anterior. Famélica pela ideia de descumprir a ordem, fugiu dali para trabalhar em uma indústria de refrigerantes. Desconfiava, mas agora tinha certeza, de que não havia laranja nos tanques onde as fábricas armazenavam os refrigerantes feitos com aroma de laranja; não havia uvas nos tanques dos refrigerantes de uva. Caiu a neve devastadora. Cobriu gente, casas, carros. Onde está o prefeito? Onde está o presidente? O está o governador? Onde está o seu mentor? Discursando na Casa Branca encastelados, como Branca de Neve, sem dor, sem dó, nem pudor.
Em um momento de pertencimento, descobriu que a tampa apenas esconde a merda; a neve a disfarça. Descobriu-se um saco de merda do qual, só morta, escapará. Virará adubo. Reciclará a natureza, como disse Lavoisier que assim seria e como sempre está sendo. Descobriu, em um momento de reflexão que não pertencia a si, nem ao Brasil, nem a lugar nenhum. Os homens são os mesmos e a merda é voz, necessidade, atitude, pesadelo de qualquer um. Onde estão mesmo os prefeitos? os vereadores? os governadores? os presidentes?… Encastelados…