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Quem aportasse no Rio de Janeiro do século XIX, ou seja, na capital do império brasileiro, recorreria imediatamente ao socorro de lenços perfumados, para que pudessem camuflar o futum exalado das vias públicas, ao qual os habitantes já estavam acostumados. O bodum era tamanho, que os brasileiros recorriam a aromatização das vias, através do cultivo de hortelã, canela e cravo-da-índia, para tonar o ar, digamos, respirável.
De longe, avistariam, principalmente ao nascer do sol, valendo-se do frescor da manhã, os famosos “tigreiros”, que eram os escravos encarregados de transportar sobre os ombros, barris repletos de excrementos e dejetos de seus senhores. Os barris eram desovados nos terrenos baldios e, impiedoso ou não, o fato é que aquela atividade rotineira se tornou uma competição entre os cativos. Os escravos concorriam sobre quem era capaz de erguer o maior monte de b… (Em tempo, por pouco escapa-me um palavrão, com ele, provavelmente, meu emprego neste jornal ha-ha). Quem de longe observasse, veria dezenas de morrinhos de dejetos humanos, coroados com bandeirolas, esperando pela próxima chuva, para que fosse dissolvidos e escoados para o mar. Veriam também, ao alvorecer, o desfile de bebuns, que varavam noites em pândega nos tantos bordéis e que, agora, saiam destes, cambaleantes e amarrotados, procurando nos terrenos baldios, entre os morrinhos de dejetos e os escravos que os juntavam, um lugar “decente” para vomitar.
A alcunha de “tigreiros”, deu-se graças à mistura pastosa e amarelada que, vez ou outra, num descuido do cativo que a transportava, despencava na pele negra, remetendo à alusiva comparação com a coloração de um tigre.
Engana-se o leitor que imaginar que a questão “tigreiros” é coisa do passado, ou mesmo conto de fadas. Na verdade, estes pobres seres, que dedicam a vida a carregar as fezes alheias e até brincar com elas, ainda existem, em plena revolução da tecnologia, elas existem. Eu esbarro nelas no dia a dia, e toda vez que olho no espelho. Exatamente, digníssimo paciente leitor, por incontáveis vezes, ao refletir minha situação nesta sociedade, cada dia mais hostil, mais sinuosa e vulnerável, sinto-me um próprio “tigreiro”, transportando sobre meus ombros (no caso franzinos, diferente da musculatura vigorosa dos negros do século XIX) os dejetos de meus senhores. E o pior de tudo, paciente leitor, que não sei porque cargas d’agua não abandonou minhas rasuras, é que consigo me ver, também, tal qual os negros do Brasil império, erguendo castelinhos de merda alheia. E, se ainda há possibilidade de piorar o quadro, me divirto com isso. Esta é a atual situação do pobre neste país. Mas, é ainda pior, a situação das pobres almas que ainda não entenderam que não pertencem a elite, que não há meio pobre ou meio rico. E passam sua existência, desovando barris maiores e produzindo-os em igual medida, só que amparados por rótulos ou sugestões sociais que, de alguma maneira os colocam acima dos pobres.
O fato, paciente leitor, é que no fatídico dia 13 de maio de 1888, aboliram a escravidão e, consequentemente, os “tigreiros” que eram forçados a transportar os dejetos da elite, mas, no mesmo dia pariram uma nova espécie de tigreiros, numa versão simbolicamente livre, igualitária em direitos, porém, mediocremente, mais resignada. Eis que aqui, brota-me uma questão. É fato que fugirei um pouco à questão dos tigreiros, e tal desconexão poderia irritar meu editor, mas, por outro lado, a parte jovem que ainda resta neste corpo corroído pelos anos, sugere sempre uma anarquia textual. E assim, proponho que faça a si próprio uma pergunta: Você é inteiramente livre? Não falo em liberdade de expressão, ou coisa do gênero. Falo sobre sua situação dentro da sociedade e consequentemente, do estado em um todo. Do tipo de liberdade que só conhece quem experimentou a profundeza de um rio com os dois pés. Reflita, enquanto vou até o terreno mais próximo desovar este barril de tributações que começa a derramar sobre meus ombros.
*Essa coluna é semanal e atualizada às quartas-feiras.