Violência obstétrica: uma realidade cruel que não costuma chegar à Justiça

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  • Publicado em 12 de julho de 2019 às 12:36
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 19:40
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Maus tratos físicos, verbais, psicológicos, ou até mesmo a negligência devem ser denunciados

Depois da mulher esperar nove meses, vem o tão aguardado momento de ter o bebê. Porém, o sonho pode se tornar pesadelo, principalmente, por conta de maus tratos físicos, verbais, psicológicos, ou até mesmo a negligência, vindos dos profissionais da saúde que seriam, em tese, responsáveis pelos bons cuidados durante a gestação, parto ou o pós-parto. Essas práticas são chamadas de violências obstétricas.

Segundo a psicóloga Raquel Mello, há mulheres que são submetidas a rotinas rígidas e muitas vezes desnecessárias, que não respeitam os seus corpos ou seus desejos. Há casos de enfermeiros e médicos que fazem ameaças, chacotas, omitem informações relevantes. “Há gestantes que, infelizmente, são obrigadas a passar por procedimentos sem sua autorização ou contra sua vontade”.

Mello alerta que quando uma mulher enfrenta tal situação traumática, pode desenvolver com maior risco de quadros depressivos, transtornos de ansiedade, fobias, compulsão alimentar, distúrbios do sono entre outros. “O dano psicológico pode demorar muito tempo para sanar. Vai depender muito de cada mulher e da intensidade que foi o impacto psicológico”.

– O suporte emocional será fundamental para a recuperação, que terá uma base muito forte na família. Os parentes precisam apoiar muito a mulher em suas demandas durante a gestação e procurar os cuidados de especialistas responsáveis – ressalta.

Para a advogada Thaisa Beiriz, do escritório Trotta e Beiriz Advocacia, umas das principais razões da violência obstétrica é a ausência de atualização por parte dos médicos, pois muitos são resistentes a mudar as práticas que aprenderam na época da faculdade, bem como estudar a medicina baseada em evidências cientificas.

– Hoje, a medicina com base em evidências é muito utilizada, já que todos os procedimentos analisados passam por extenso estudo pelos especialistas, sempre visando a qualidade da saúde do paciente – comenta.

A advogada lembra que outro problema observado é a falta de humanização e empatia dos profissionais da saúde com as gestantes. Ela diz que os casos mais comuns envolvem negar atendimento ou impor dificuldade para que a gestante receba os serviços a que tem direito, ou quando os profissionais realizam práticas e intervenções desnecessárias e violentas. “Há médicos que forçam a saída do bebê empurrando a barriga da mãe, até mesmo subindo em cima delas, para acelerar o processo”.

– Esse procedimento é chamado de Manobra de Kristeller, já banido pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa manobra é agressiva e consiste em pressionar a parte superior do útero para facilitar e acelerar a saída do bebê, podendo causar várias lesões graves – explica.

Ela lembra ainda que há casos que envolvem comentários ofensivos e humilhantes à gestante, inferiorizando-a por sua raça, idade, condição socioeconômica ou número de filhos. “Em outras situações, o profissional causa na mulher sentimentos de medo, abandono, insegurança e instabilidade emocional”.

Como defesa, Thaisa ressalta que a família e a gestante precisam estar atentas para qualquer indício de má conduta médica. Caso suspeite de algo, a primeira coisa a se fazer é se cercar do maior número de provas possíveis, dentre elas, requerer cópia do prontuário médico no hospital. “Não deixe de procurar um profissional qualificado para buscar seus direitos na justiça para ser indenizada pelos danos sofridos”.

– Também não deixe de denunciar o médico no Conselho Regional de Medicina, no Ministério Público, para o Disque-Saúde, no número 136. Faça ainda uma reclamação na ouvidoria do hospital. Caso seja um hospital particular, a denúncia pode ser feita na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Quando não nos calamos, impedimos que mais uma família se torne vítima dessa prática – conclui.

HOJE NO BRASIL

No último mês de maio, o Ministério da Saúde emitiu um despacho pedindo que o termo “violência obstétrica” seja abolido por ter conotação inadequada. A orientação causou polêmica e instituições como MPF, OAB e a Anadef – Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais repudiaram a orientação do órgão Federal.

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Segundo as entidades, as conclusões do despacho do ministério da Saúde “contrariam farto material probatório produzido pelo Ministério Público Federal que demonstra sérias violações aos direitos fundamentais das mulheres durante atendimento obstétrico”.

De fato, as manifestações das entidades têm base: sofrer algum tipo de violência obstétrica é realidade para uma em cada quatro mulheres no Brasil, segundo o estudo “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, realizado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Sesc, em 2010.

Outro dado que chama atenção é que o número de denúncias de violência obstétrica à Central de Atendimento à Mulher, do governo Federal, pelo número 180, cresceu dez vezes do ano passado para este. Os dados foram adiantados à CBN. 

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Triste caso

18 de abril de 2012. O que era para ser um dia feliz na vida de uma gestante com a chegada de sua filha se tornou um triste episódio de violência obstétrica. Ela foi anestesiada contra sua vontade, tendo de ouvir a declaração do médico de que “não era índia para aguentar um parto sem tomar nada”. Também foi amarrada, submetida à episiotomia e separada do marido por várias horas.

Infelizmente, sua filha não resistiu ao parto. E, em decorrência das inúmeras violações acontecidas durante o procedimento, o caso foi parar na Justiça. A mulher ajuizou uma ação por dano moral contra os médicos, maternidade e o plano de saúde.

Assista à reportagem:

Sobre a orientação do ministério da Saúde de extinguir a expressão, a advogada da gestante, Gabriella Sallit, explicou que o termo “violência obstétrica” já está consolidado e é reconhecido, inclusive, pela OMS. “Esse dispositivo só ressalta a grande dissociação entre este atual governo e os anseios da sociedade civil. Infelizmente, abolir a expressão não vai fazer com que a violência obstétrica deixe de existir”, afirma.

A causídica esclarece que muitas mulheres não sabem que passaram por violência obstétrica e que falta informação correta sobre um bom parto, por isso há poucos casos sobre o tema na Justiça.

Para evitar esse tipo de violência, a advogada aconselha que as gestantes elaborem um “plano de parto” e o protocolem na maternidade escolhida para a internação: “É uma carta de intenções, um contrato, onde ela diz quais são os procedimentos médicos aos quais ela aceita se submeter”, explica.