Umbanda faz 110 anos em meio a ataques e queda no número de devotos

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 2 de junho de 2018 às 17:12
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:46
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Liberdade de credo é direito desde 1891, mesmo assim, a intolerância religiosa ainda existe

Até hoje, a família de Zélio
Fernandino de Moraes não sabe explicar ao certo o problema de saúde que ele
teve aos 17 anos. Só sabe dizer que, por vários dias, o estudante que sonhava
seguir carreira na Marinha não conseguia sequer levantar da cama.

Preocupada, sua família, uma das mais
tradicionais de São Gonçalo, a 25 km do Rio, o levou a inúmeros médicos. Nem o
tio do rapaz, o psiquiatra Epaminondas de Moraes, quis arriscar um diagnóstico.
O máximo que uma “rezadeira” conseguiu foi aconselhá-lo a desenvolver
sua mediunidade.

Um dia, Zélio acordou bem disposto e
aparentemente curado. Na dúvida, um amigo sugeriu uma visita à Federação
Espírita do Estado do Rio, em Niterói. Era o dia 15 de novembro de 1908.

Chegando lá, o médium José de Souza,
que dirigia a sessão espírita kardecista, pediu que Zélio sentasse à mesa. A
certa altura, espíritos de caboclos (ancestrais indígenas brasileiros) e pretos
velhos (escravos africanos) começaram a se manifestar. Na mesma hora, o
dirigente, alegando que eram espíritos “atrasados”, pediu que se
retirassem.

Logo, Zélio foi
incorporado por uma entidade que saiu em defesa das demais: “Se não
houvesse ali espaço para espíritos de negros e índios cumprirem sua missão, ele
(espírito) fundaria, já no dia seguinte, um novo culto na casa de Zélio”.

Quando perguntaram seu nome, a
entidade respondeu: “Caboclo das Sete Encruzilhadas”. E, em seguida,
completou: “Para mim, nunca haverá caminhos fechados”.

“Há várias maneiras de definir a
umbanda. Espiritismo abrasileirado é apenas uma delas. A religião valorizou o
papel de caboclos e pretos velhos como entidades espirituais”, explica o
antropólogo Emerson Giumbelli, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).

No dia seguinte ao de sua primeira
manifestação, 16 de novembro de 1908, o Caboclo das Sete Encruzilhadas voltou a
incorporar Zélio de Moraes. Dessa vez, para traçar as diretrizes da nova
religião: vestir roupas brancas, usar guias de contas coloridas e, entre outras
faculdades mediúnicas, priorizar a incorporação de espíritos. “Com os que
sabem mais, aprenderemos. Aos que sabem menos, ensinaremos. Mas, a ninguém
viraremos as costas”, teria dito, na ocasião, Zélio de Moraes. Por outro
lado, proibiu o jogo de búzios, o uso de atabaques e o sacrifício de animais.

Um dos princípios básicos da umbanda
é jamais fazer o mal. Isso inclui querer algo que pertença à outra pessoa,
interferir no livre-arbítrio de terceiros ou cobrar para fazer consultas ou
atendimentos, exemplifica Leonardo Cunha, bisneto de Zélio.

‘Psicólogo do pobre’

Se o dia 15 de novembro entrou para a
história como o Dia Nacional da Umbanda, o 16 de novembro ficou marcado pela
fundação da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade.

A casa situada no número 30 da rua
Floriano Peixoto, em Neves, São Gonçalo, já nem existe mais. Foi demolida em
2011. Hoje, funciona em Cachoeiras de Macacu, a 97 km da capital, e, pelo menos
uma vez por mês, atende uma média de 120 pessoas. “A umbanda pratica a
caridade e não cobra um centavo de ninguém. O preto velho é o psicólogo do
pobre”, afirma Fátima Damas, presidente da Congregação Espírita Umbandista
do Brasil.

No Brasil, a liberdade de credo é
assegurada desde a primeira Constituição da República, de 1891. Mesmo assim, a
intolerância religiosa nunca deixou de existir. O Código Penal de 1890, vigente
no ano em que a umbanda foi fundada, criminalizava a prática dos cultos afros.

Por essa razão, a Tenda Espírita
Nossa Senhora da Piedade foi alvo constante de batidas policiais. “Meu avô
enfrentou preconceito até mesmo dentro de casa. Sua família era
predominantemente católica”, relata a neta, Lygia Maria Cunha.

Zélio de Moraes dirigiu a Tenda
Espírita Nossa Senhora da Piedade até 1946, quando passou o comando para as
filhas Zélia e Zilméa, ambas já falecidas. Quando ele morreu, em 3 de outubro
de 1975, Lygia, sua neta, tinha 38 anos, e Leonardo, seu bisneto, 11.

Atual dirigente espiritual da
Piedade, como a família se refere à tenda espírita, Lygia conta que seu avô não
sabia nadar e até de piscina tinha medo. No entanto, quando incorporava a
entidade Orixá Malet, era capaz de entrar no mar e arriscar umas braçadas por
entre ondas fortíssimas. “Da areia, acompanhávamos tudo, apavorados. Já
imaginou se a entidade resolvesse deixá-lo antes de ele estar são e salvo na
praia? Felizmente, isso nunca aconteceu”, relata.

Adeptos

O atual presidente da Piedade, Leonardo Cunha,
explica que o nome umbanda só veio muito depois de sua fundação. Originalmente,
o nome do culto era alahbanda – em homenagem à entidade Orixá Malet, que fora
muçulmano em sua encarnação anterior. De origem árabe, Alá ou Alah significa
Deus. Já “banda”, palavra coloquial do idioma português do século 15,
é sinônimo de lado. “Umbanda pode ser entendida como Ao lado de Deus ou
Com Deus ao lado”, explica.

Segundo dados do Censo de 2010, o número de
umbandistas hoje no Brasil, 110 anos depois de sua fundação, chega a 432 mil.
Uma queda de 20% em relação ao Censo de 1991.

Para Fátima Damas, da Congregação Espírita
Umbandista do Brasil, esses números não correspondem à realidade. “Muitos
umbandistas não admitem publicamente que são umbandistas. Por medo ou vergonha,
preferem dizer que são católicos”, justifica.

Os casos de intolerância religiosa, segundo a
Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos
(SEDHMI), aumentaram, só no Rio de Janeiro, 56% em relação ao primeiro
trimestre de 2017. São 25 denúncias entre janeiro e abril contra 16 no mesmo
período do ano passado.

Em alguns casos, vândalos depredam os terreiros,
destroem imagens e fazem pichações: “Fora macumbeiros!”, “Não
queremos macumba aqui!” e “Só Jesus expulsa demônio das
pessoas!”. Em outros, pais, mães, filhos e filhas de santo são impedidos
de vestir branco, usar guias e até de entoar cânticos. 

Dados da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), órgão
vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos (MDH), revelam que os ataques a
terreiros de umbanda e candomblé, entre outras, não estão restritos ao Rio. Em
2011, o Disque 100 (Disque Direitos Humanos) atendeu 15 casos. Em 2015, foram
556. Ano passado, saltou para 759.

Para o sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade
de São Paulo (USP), a intolerância religiosa nasce do preconceito racial e
agrega que “há muita religião para pouco devoto. Por essas e outras,
algumas igrejas neopentecostais chegam a impor metas de conversão de
umbandistas aos seus pastores”.

Em quase 110 anos de fundação, a Tenda Espírita
Nossa Senhora da Piedade sofreu um único caso de vandalismo. Foi nos anos 1980
quando um invasor, durante um surto psicótico, teria quebrado alguns santos e
ateado fogo no terreiro. As chamas não se alastraram.

Para os dias 15 e 16 de novembro, Luciano avisa que não vai ter festa. No máximo, bolo com champanhe. “Na umbanda, espírito não desce para dançar, desce para trabalhar. Nossa vida só tem sentido quando nos colocamos à disposição de Deus para servir ao próximo”, afirma.


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