​Trágica verdade

  • Língua Portuguesa
  • Publicado em 7 de julho de 2017 às 17:43
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:20
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A língua portuguesa traduz o nosso mundo. É ela a nossa identidade.

Nosso mundo é o da palavra. Palavras escondidas nas páginas dos dicionários pela norma culta padrão ou jogadas ao vento por obra da oralidade. Essas vivem no plano das linhas e entrelinhas, dos pressupostos e subentendidos, isto é, ou abraçamos a erudição de um Rui Barbosa ou nos identificamos com Dámazio dos Siqueiras, personagem de Famigerado, de Guimarães Rosa, diante do doutor farmacêutico: O senhor fale em língua de “pobre”, “de dia de semana”.

Ler é adquirir vocabulário, estruturas frasais, significantes e significados, para traduzirmos o mundo e alimentarmos nossa imaginação: “Mundo, mundo, vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução / Mundo, mundo, vasto mundo / mais vasto é o meu coração”, versificou Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior. Afinal,só assim, é possível aprender a escrever de “carreirinha”, como afirmou Dias Gomes através da boca de Zeca Diabo, personagem de O Bem Amado.

Ler é transcender (ir além), transgredir (quebrar regras), criar e recriar. A leitura jamais poderia ser um instrumento de punição. A listagem oficial dos vestibulares parece muito mais um instrumento de tortura do que um incentivo à leitura. Na verdade, incentiva a fabricação de resumos e de “dadores de aulas de literatura”, donos de verdades absolutas sobre autores e obras. Triste é constatar que há professores que entram em sala de aula e dizem que não leram a obra, porque é muito chata. Pior, ao ler um resumo, o aluno que não leu e nem nunca lerá crê que conhece a obra e, na hora da prova, “dá com os burros n’água”.

Um aluno, outro dia, perguntou-me: “Professor, quantas páginas tem Mayombe (livro do angolano Pepetela)?”. Expliquei: “Você ainda não entendeu que uma obra de arte não é medida pelo número de páginas”. Outro me disse que não entende língua de sertanejo, por isso desistiu, na segunda página, de ler Sagarana (obra de João Guimarães Rosa). Disse-lhe: “Mas, Sagarana não traz a linguagem do sertanejo e sim, a construção do seu universo mítico”. Muitos me perguntam, por que a FUVEST pede nove livros, se ela não tem como explorá-los nas questões da prova. Respondo que creio que para aumentar a cultura humanista do aluno.

A maioria tem uma dúvida cruel: por que a prova específica da Medicina de Ribeirão Preto é a de Geografia, quando o mais lógico seria seguir a da Pinheiros, Física? Segundo eles, Médico não usará Geografia para nada, mas Física sim. Não conseguem entender que precisam carregar uma cultura humanista para dentro da universidade, pois os conteúdos relativos à área serão pisados e repisados nas salas de aula. Não entendem que o Brasil é um país tão absurdo que o aluno aprende a maioria dos conteúdos, apenas para passar no vestibular, que é absurdo, mas é preciso “humanizar” a Medicina. Ela deveria ser a principal das “ciências humanas”, não é? Ou ela virou tão-somente um grande balcão de negócios?

Por que estou fazendo essas ponderações? Primeiro: somos um dos países em que menos se lê no mundo. Segundo: frequentamos continuamente os últimos lugares no PISA (Programa Internacional de Alunos bancado pela OCDE), nosso subdesenvolvimento intelectual é brutal. Terceiro: aprendemos para sermos empregados de alguém, concursados ou não, porque, na escola, não nos ensinam a empreender. Quarto: é muito fácil nos convencer a abrir mão das nossas riquezas, pois aprendemos a detestar tudo o que é relativo ao nosso país e à nossa história. Como cansou de dizer Assis Chateaubriand: “Somos um país de botocudos”. Ele próprio desprezando seu povo e sua cultura.

Finalmente: fazer um vestibulando acreditar que aumentar o tal “repertório cultural” é decorar meia dúzia de frases de escritores e filósofos famosos mostra o quanto é fácil aplicar o “conto do vigário”. Fazer com que acreditem que seguir modelos é crucial para viver numa sociedade competitiva é menosprezar a inteligência deles e de seus pais. Chamam a isso de esperteza, chamo a isso de “mau-caratismo”. Há enganadores travestidos de profissionais que leem menos e sabem muito menos do que seus alunos.


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