Smartphones potencializam necessidade de socialização humana

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 18 de maio de 2019 às 22:58
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 19:33
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Pesquisadores buscam entender mecanismos ligados ao uso de smartphones para combater excesso

Você pode ir ao cinema ou ao mercado sozinho. Se pensar melhor,
porém, está acompanhado. Graças aos smartphones, a interação social é
frequente, mesmo à distância.

Um grupo de pesquisadores canadenses mostra que o aparelho,
considerado indispensável por muitas pessoas, ajuda a atender a uma necessidade
existente desde os primórdios da história humana: a sociabilidade. E a forma
como ele é usado varia pouco conforme a faixa etária do dono, indica outro
grupo de cientistas — dessa vez, americanos.

Para autores e especialistas, os resultados de ambos os estudos
podem ajudar na criação de estratégias que estimulem o uso mais saudável desses
dispositivos móveis.“Há alguns anos, venho observando as experiências de
pessoas com smartphones e ouvindo sobre as frustrações delas com a forma como
se envolvem com o telefone. Por outro lado, quando as perguntamos sobre o que
acham significativo sobre o fato der ter o aparelho, ninguém diz: ‘Ah, nada’.
Todas podem apontar experiências que têm um significado pessoal”, diz ao
Correio Alexis Hiniker, professor-assistente da Universidade de Washington, nos
Estados Unidos, e um dos autores do segundo estudo, apresentado na ACM CHI,
conferência sobre fatores humanos em sistemas computacionais realizada na
Escócia.

No estudo, Hiniker e sua equipe entrevistaram três grupos de
usuários de smartphone — alunos do ensino médio, universitários e adultos
graduados —, com idade entre 14 e 64 anos.

As entrevistas com os 39 voluntários começaram com perguntas
básicas e um desafio simples: “passear” pelos aplicativos do aparelho sem muita
preocupação. Nas entrevistas sobre a experiência, os autores identificaram uma
série de gatilhos comuns.


Por exemplo, os voluntários começavam a usar o aparelho enquanto aguardavam um
amigo, durante tarefas tediosas e repetitivas, em situações socialmente
desajeitadas e quando esperavam receber uma mensagem ou uma notificação.
“Pensávamos que teríamos uma visão mais distinta sobre os comportamentos dos
participantes conforme a faixa etária”, conta Jonathan Tran, um dos autores do
trabalho e pesquisador da Universidade de Washington.

As justificativas para o uso do smartphone também variaram pouco.
“Os participantes falaram sobre tudo nos mesmos termos: os alunos do ensino
médio disseram: ‘Sempre que tenho um momento morto, se tiver um minuto entre as
aulas, pego meu telefone’. E os adultos, ‘Sempre que tenho um instante de
espera, se eu tiver um minuto entre ver pacientes no trabalho, pego meu
telefone’”, ilustra Tran.

Significados
diversos 

Em uma segunda etapa, os cientistas pediram aos voluntários que
sugerissem uma estratégia que pudesse ajudá-los a utilizar o aparelho com
moderação. “Muitos esboçaram mecanismos de bloqueio, em que o telefone
essencialmente não responde aos comandos por um período de tempo. Mas os
participantes mencionaram que, embora se sentissem mal com relação ao
comportamento, não era o suficiente para utilizarem essas soluções. Houve
alguma ambivalência”, frisa Tran.

Segundo a equipe, o resultado sinaliza a possibilidade de uma ideia mais sutil
por trás do relacionamento das pessoas com os smartphones. “Se o telefone não
fosse valioso, com certeza, o mecanismo de bloqueio funcionaria muito bem. Nós
poderíamos simplesmente parar de ter esses dispositivos, e o problema seria
resolvido. Mas esse não é realmente o caso”, ressalta Hiniker.

Um dos sinais constatados que sinalizam a existência dessa relação
mais complexa é o fato de os voluntários atribuírem significados diversos à
experiência com o aparelho, principalmente quando se conectam ao mundo real por
meio de aplicativos. “Um participante falou sobre como um gerador de memes o
ajudou a interagir com a irmã porque eles se identificavam o tempo todo. Outra
mencionou que o Kindle permitiu que ela se conectasse com o pai, que estava
lendo os mesmos livros”, conta Hiniker.
Segundo o pesquisador, há, inclusive, uma análise econômica nessa relação. “As
pessoas descrevem isso como um cálculo.  Pensam: ‘Quanto desse tempo é
realmente investido em algo duradouro, que transcende esse momento específico
de uso?’. Elas se importam se o período gasto no celular gerou algum valor, não
é a quantidade de tempo que as preocupa, mas como ele é gasto”, resume.

Em vez de antissocial, hipersocial 

A dedicação excessiva ao smartphone sempre levanta questões sobre
falta de sociabilidade. Um estudo publicado na revista Frontiers in Psychology
sugere o contrário. O hábito pode ser hipersocial, não antissocial. “Há muito
pânico em torno desse tópico. Estamos tentando oferecer boas notícias: mostrar
que nosso desejo por interação humana é viciante e que há soluções bastante
simples para lidar com isso”, ressalta Samuel Veissière, professor do
Departamento de Psiquiatria da Universidade McGill, no Canadá, e um dos autores
do trabalho.

O cientista revisou uma série de estudos sobre o uso disfuncional
da tecnologia inteligente a partir de uma perspectiva  evolucionária.
Descobriu que as funções mais viciantes do aparelho compartilham uma
característica: exploram o desejo humano de se conectar com outras pessoas.
Veissière explica que o desejo de vigiar e monitorar os outros — e também de
ser visto e monitorado — está no fundo de nosso passado evolucionário. 

O
cientista destaca que os seres humanos evoluíram para ser uma espécie exclusivamente
social e exigem informações constantes de terceiros. Isso serve como um guia
para um comportamento culturalmente apropriado. “É também uma maneira de
encontrar significado, objetivos e um senso de identidade”, complementa.

A psicóloga clínica Patricia Luque também acredita que a forma de
utilização do celular atualmente apenas muda um comportamento social que é
constante na história humana. “Isso ocorre desde que o homem vive nas cavernas.
O mote principal não muda, apenas a maneira que ele ocorre. Hoje, temos
reuniões virtuais, por exemplo. Só muda o meio como é feito”, frisa. “Talvez,
no futuro, manteremos nossas conversas, mas isso poderá ser feito também com
robôs.”

Cérebro sobrecarregado

Apesar da demanda natural de sociabilidade, Veissière admite que o
ritmo e a escala da hiperconectividade fazem com que o sistema de recompensas
do cérebro possa ser sobrecarregado, levando a vícios prejudiciais. 

Dessa
forma, desativar as notificações e configurar os horários apropriados para
verificar o telefone, por exemplo, podem ajudar a recuperar o controle sobre o
smartphone. “As políticas de local de trabalho que proíbem e-mails noturnos e
de fim de semana também são importantes. Em vez de começar a regulamentar as
empresas de tecnologia ou o uso desses dispositivos, precisamos começar a
conversar sobre a maneira correta de usar os celulares”, defende.

Luque
lembra que, apesar de despertar preocupações, o risco de ter as interações
sociais comprometidas devido à dedicação excessiva a um aparelho da moda já
desencadeou reações parecidas no passado. “Lembro que fiz pesquisas analisando
o cenário de quando surgiu o rádio. Nessa época, muitas pessoas achavam que ele
ia extinguir completamente o contato social, e isso não ocorreu”,
ilustra. 

Demanda por novos recursos 

Os celulares do futuro deveriam ter recursos mais eficazes para
ajudar no controle do tempo dedicado a eles, defende Alexis Hiniker. O
professor da Universidade de Washington sugere que os projetistas abandonem a
ideia de mecanismos de bloqueio total do sistema e criem aplicativos que
permitam que o usuário controle o seu envolvimento. “As
pessoas têm boa noção do que é importante para elas. Por isso, podem tentar
adaptar o que está em seu telefone para apoiar o que consideram significativo”,
justifica. “Isso é muito motivador. A solução não é se livrar da tecnologia.
Ela fornece um valor enorme”, justifica.

João Armando, psiquiatra do Instituto Castro e Santos, em
Brasília, chama atenção para a necessidade de novos recursos nesse sentido.
“Cada vez mais dependências que não são químicas são estudadas, como os jogos
de videogame. O que víamos com esses eletrônicos antigamente hoje migrou para o
celular. Temos que acompanhar essas mudanças para saber lidar com elas da
melhor forma possível.”

Para o psiquiatra, outro ponto que merece destaque é a
substituição do contato físico pelo virtual, tema que pode ser aprofundado em
futuras pesquisas. “Acredito que também vale observar mais a fundo o que essa
troca de sociabilidade gera na vivência. Vemos que muitos jovens perdem um
pouco a interpretação física, como o toque e o olhar.  É outro tipo de
vivência, que pode causar prejuízos”, frisa. 


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