​Saudosismo…

  • Bernardo Teixeira
  • Publicado em 21 de junho de 2016 às 16:53
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 17:49
compartilhar no whatsapp compartilhar no telegram compartilhar no facebook compartilhar no linkedin

Fachada do antigo Mercadão de Franca

​Quando mocinha, lá pelos idos dos anos 70 e 80, estudava de manhã e à tarde ajudava meu pai no empório. Muita gente nem deve saber o que significa – comércio, venda, armazém, uma versão pequena e anterior do supermercado. O nosso ficava na Couto Magalhães, pregado ao antigo Mercadão Municipal, quase na esquina, na parte de baixo, vizinho de um conserto de rádios. Ali vendíamos o que na época se chamava de secos & molhados: arroz, feijão, café, sal, açúcar, batatas, milho seco, fubá, quirelas para galinhas e muitas outras coisas que já nem me lembro mais. A maioria desses grãos vinham em sacas de pano e tinham que ser pesados na hora. Ainda eram difíceis e caras as embalagens ou nem existiam, sei lá.

Um dos produtos que mais vendíamos no armazém era o óleo a granel, que ficava armazenado em grandes barris de 200 litros e bombeados de acordo com o pedido do freguês, que precisava levar de casa suas garrafas. Lembro que nos anos em que a soja tinha problemas na safra, faltava óleo no mercado, mas na nossa venda não, porque meu pai era muito amigo de um tal de Claudio, dono da fabrica de óleo onde ele comprava. E o Claudio não deixava faltar óleo na venda do meu pai. Fazia fila e meu braço ficava duro e engordurado.
Vendíamos também rolos de arame farpado, sacos vazios para café, sacos brancos de algodão, sabão em pedra, soda cáustica (que eu detestava pesar), alpargatas e fumo de corda, mineiro e goiano, que quando ficavam muito ressecados, meu pai molhava com café frio e deixava marinar. Ele entendia, porque fumava e dizia que o fumo apurava. Nas horas vagas ele preparava as palhas para os cigarros e eu ficava observando hipnotizada os movimentos do canivete pra lá e pra cá, alisando, amaciando e cortando palha por palha, que depois de tanto capricho acabava morrendo queimada.

Não esqueço das Semanas Santas, quando chegavam as enormes caixas de madeira de bacalhau do Porto, muito bem fechadas com grampos que tinham que ser arrancados a força com pé de cabra… eu tirava as lascas do meio, grossas e macias e comia o dia inteiro, cru e mau lavado do sal. E não adiantava ninguém me falar que fazia mal.

Meu pagamento eu gastava em sorvetes e frutas. Na verdade eu não tinha salário, podia pegar o quanto eu quisesse e aproveitava, ora no Mercadão, ora na Padaria Pucci da rua ao lado. Ouvi o dono dizendo pra minha mãe mais de uma vez – essa menina nasceu antes do picolé. Até parece que ele não precisava vender… uai.

O Mercadão era grande e movimentado, ocupava um quarteirão inteiro. Os box das lojas eram divididos em três alas, na parede a direita, na parede a esquerda e no meio, formando dois corredores longitudinais e alguns corredores transversais. Tinha box de legumes, frutas e verduras, açougue, peixaria, box de roupas, presentes, brinquedos. Também tinha um bar, com salgadinhos, refrigerantes e bebidas alcoólicas e uma Tabacaria – concorrente dos fumos do meu pai.

A mim parecia que eram todos da mesma família ou que tinham muita amizade. E apesar de nossa venda ser do lado de fora, parecia que também nós fazíamos parte.

Apesar de meio sujo e mau cheiroso pela quantidade de odores impregnados, qualquer ida lá era um passeio. O nariz se acostuma aos olores do cotidiano.

Nem sei quando o derrubaram… já estava estudando fora…

Os anos passam muito depressa, que dó! 30, 40 anos, se foram, num sopro. E quanta mudança de lá pra cá, no estilo de vida, no jeito das coisas, nas inúmeras maneiras de embalar; no canivete que já não tem mais palha pra alisar, no Mercadão que nem fotos quase sobrou pra relembrar…

Interior do antigo Mercadão de Franca, onde hoje é o Terminal de Ônibus Airton Sena


+ Cotidiano