Por que é arriscado flexibilizar a rotina só com base em testes de covid-19

  • Rosana Ribeiro
  • Publicado em 10 de agosto de 2020 às 01:41
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 21:05
compartilhar no whatsapp compartilhar no telegram compartilhar no facebook compartilhar no linkedin

Parte das pessoas não desenvolve anticorpos ou não os desenvolve em níveis detectáveis, mesmo infectadas

Um único falso negativo em uma pessoa contaminada pode fazer com que essa pessoa relaxe nas medidas preventivas e acabe infectando outras centenas e esse é o grande risco, explica o microbiologista Atila Iamarino à BBC News Brasil. 

“Pelo potencial da doença em se espalhar tanto e pelo potencial de erros nos testes, não dá para tomar decisões baseadas nesse tipo de teste quando se trata de (reunir) muitas pessoas.”

Mas quais são os testes disponíveis? Para que servem? E quais são suas limitações, segundo especialistas e documentos científicos?

O teste molecular: RT-PCR​

Hoje, há basicamente dois tipos de testes amplamente oferecidos ao público em geral em meio à pandemia. 

E eles medem coisas bem diferentes, explica o infectologista Fernando Bozza, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do IDOR (Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino).

O teste molecular, sendo o mais comum o do tipo RT-PCR, examina a presença de material genético do vírus, o RNA. 

Esse é o exame feito com o swab, aquele cotonete comprido colocado dentro das narinas para coletar amostras depois examinadas em laboratório.

O RT-PCR é usado para detectar se a pessoa está com o vírus naquele momento e se precisa ser isolada e ter seus contatos recentes rastreados, diz Bozza.

É esse exame que embasa as estatísticas de covid-19 e estudos epidemiológicos no Brasil e no mundo. Ele também tem sido exigido por alguns países para admitir estrangeiros em seu território em meio à pandemia.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomenda seu uso quando a pessoa tiver sintomas compatíveis com os do novo coronavírus ou suspeita de contágio, mesmo sem sintomas.

Mas ele não é livre de problemas, diz a pesquisadora Natalia Pasternak.

“Nenhum teste é perfeito, e fatores que podem interferir, gerando um falso negativo (isto é, uma falha do teste em detectar o RNA), incluem erros na coleta — é difícil usar o swab, e o procedimento é extremamente incômodo para o paciente — e também acondicionamento inadequado da amostra: o RNA é uma molécula que degrada com muita facilidade”.

De qualquer modo, muitos países bem-sucedidos em conter os surtos iniciais do coronavírus usaram esses testes, disse Pasternak, porque “testaram várias vezes o mesmo paciente. E usaram os resultados para isolar os pacientes e rastrear e testar seus contatos, gerando assim um retrato da progressão da pandemia”.

No Brasil, disse a cientista, temos sido lentos em processar os resultados desses exames PCR e em aplicá-los em grande escala, dificultando que sejam usados para embasar decisões de saúde pública mais amplas.

Teste sorológico (IgM/IgG), o teste ‘rápido’​

O segundo tipo é o sorológico, que não detecta a presença do vírus no corpo, mas sim a presença de anticorpos (IgM e IgG) no sangue. Ou seja, ele testa a nossa resposta imunológica.

Em laboratórios, são feitos com coleta de sangue no braço, o que Iamarino diz que aumenta a precisão dos testes.

São desses tipos também os “testes rápidos” de covid-19, atualmente disponíveis em farmácias do Brasil, onde, à semelhança dos testes de glicose, são feitos com uma picada no dedo, e o resultado sai em até 30 minutos.

E esse é o tipo de exame que mais preocupa os especialistas, caso as pessoas passem a usá-los indiscriminadamente para tomar decisões de flexibilização do isolamento, porque ele não permite concluir com certeza se a pessoa tem (ou mesmo se já teve) o Sars-Cov-2 ou se está realmente imunizada. “Testes rápidos (IgM/IgG) NÃO têm função de diagnóstico”, diz a Anvisa.

“Testes rápidos positivos indicam que você teve contato recente com o vírus ou que você já teve covid-19 e está se recuperando ou se recuperou, uma vez que indicam a presença de anticorpos (defesa do organismo)”, prossegue o documento da Anvisa.

“No entanto, os anticorpos só aparecem em quantidades detectáveis nos testes pelo menos oito dias depois da infecção”. 

“Ainda assim, o teste pode ser positivo, indicando que você teve contato com OUTROS coronavírus, e não com o Sars-Cov-2 (um falso positivo). Assim sendo, esse teste isolado não serve para diagnosticar (confirmar ou descartar) infecção por covid-19. O diagnóstico deve ser feito por testes de RT-PCR.”

A Anvisa ressalta que, mesmo em caso de resultado negativo no teste de anticorpos, “sugere-se a manutenção do isolamento social domiciliar até o limite de 14 dias após o início dos sintomas, conforme recomenda o Ministério da Saúde”.

Em entrevista ao programa Roda Viva, em 29 de junho, Natalia Pasternak declarou que testes rápidos “não servem para nada”. “Não comprem. Não deveriam ser vendidos nas farmácias, (porque) mais confundem do que ajudam a população”, opinou.

O resultado negativo no teste sorológico tampouco pode ser comemorado com um “ufa, não estou com o vírus”, explicou ela. “Pode não ser uma coisa boa, porque você pode estar com o vírus (mas) ainda não fez anticorpos e, como o teste é ruim, o teste não viu”.

Ou, pior ainda, no caso de o teste dar positivo, o risco é a falsa sensação de segurança. “‘Oba, estou protegido, não preciso mais usar máscara, posso abraçar meus pais idosos, não preciso mais cumprir medidas de distanciamento social’. Ops, era um falso positivo e você está completamente exposto”, disse Pasternak.

Outro ponto lembrado pelos pesquisadores é que parte das pessoas não desenvolve anticorpos ou não os desenvolve em níveis detectáveis, mesmo tendo sido infectadas.

Por fim, Bozza lembra que as pesquisas científicas disponíveis até agora ainda não esclareceram plenamente qual é a duração da nossa imunidade à covid-19, embora haja indicativos de que pessoas infectadas desenvolvem imunidade no curto e médio prazo.

Os falsos positivos e negativos​

O periódico New England Journal of Medicine, um dos mais renomados da área médica, três pesquisadores dos Estados Unidos argumentaram que, se a oferta geral de testes é uma grande preocupação para monitorar o avanço do coronavírus, “a precisão desses testes pode se mostrar um problema de longo prazo ainda maior”.

“Diagnósticos imprecisos enfraquecem os esforços de contenção da pandemia”, afirmaram os autores, de diferentes centros médicos e universitários americanos.

“O teste diagnóstico (em referência ao RT-PCR) ajudará a reabrir o país de modo seguro, mas só se forem altamente sensíveis e validados sob condições realistas contra um padrão de referência clinicamente significativo.”

Atila Iamarino diz à BBC News Brasil que, segundo diferentes estudos (e nem todos conclusivos), testes podem ter margens de erro grandes, de até 30%, a depender de falhas no exame em si ou pela forma como amostras foram coletadas ou armazenadas.

Uso otimizado de testes​

“O teste tem o papel de entender como a doença está progredindo, mas, na base individual, ele tem limitações”, particularmente o sorológico rápido, explica Fernando Bozza.

É possível empresas e indivíduos traçarem estratégias a partir deles? “É uma boa pergunta, porque a interpretação dos testes não é simples”, prossegue o pesquisador.

“Mas simplesmente fazer uma rodada de testes (sorológicos) é tirar uma fotografia que não vai me dizer muita coisa.”

Para Iamarino, empresas e locais que exigirem testes como pré-requisito para a presença física de pessoas devem ter em mente não apenas as chances consideráveis de falsos positivos ou negativos, mas também do “incentivo cruel” que é essa exigência.

“Quanto maior for a restrição imposta com base no teste, maior é a chance de as pessoas falsificarem esse teste, se disso depender o seu emprego, por exemplo”, explica.

Ele opina também que “testagens em massa ou rápidas não devem basear políticas de reabertura”. “Isso cria um ambiente falsamente seguro, quando ele não é.”

É o problema, diz Bozza, da proposta conhecida como “passaporte de imunidade”, que prevê trânsito livre para pessoas que comprovem terem sido curadas ou terem testado negativo para o vírus. “É uma política que segrega e induz a comportamentos errados.”


+ Ciência