Por cirurgias plásticas mais baratas, brasileiros vão até Venezuela e Bolívia

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 23 de julho de 2018 às 11:11
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:53
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Mulheres e homens organizam grupos para viagens pelo WhatsApp sem se preocupar com os riscos

A microempresária Silvana
Siqueira, de 39 anos, se juntou a outras quatro mulheres e, em um carro,
atravessou a fronteira entre o Brasil e a Venezuela no início deste ano. O
objetivo: se submeter a cirurgias plásticas.

E elas não são as únicas. Segundo médicos e outras
pessoas desse ramo, cresceu nos últimos anos a busca, por brasileiros, desses
procedimentos em países como a Bolívia e a Venezuela. A ponto de todo um
mercado ter se organizado em torno desse filão.

Há inúmeras páginas e grupos no Facebook dedicadas ao
assunto. Os interessados criam grupos no WhatsApp, em sua maioria compostos por
mulheres, nos quais trocam experiências e organizam as viagens, atraídos
principalmente pela oferta de menor preço. Além disso, brasileiros têm atuado
como intermediadores entre pacientes, médicos e “cuidadores”, pessoas
que recebem para ajudar no pós-operatório.

Não há uma estatística sobre
essa procura, mas a Sociedade Boliviana de Cirurgia Plástica cita o câmbio,
favorável a quem vive no Brasil, como um dos principais atrativos. Na
Venezuela, um só médico diz operar até 12 brasileiros por mês. Lá, a crise
econômica tem feito os profissionais atuarem cada vez mais para atrair clientes
do exterior, de acordo com os relatos.

Silvana Siqueira conta que decidiu fazer as plásticas no
país vizinho após ouvir relatos bem-sucedidos de amigas. Ela pagou R$ 13,5 mil
pelos procedimentos. “A qualidade do serviço deles é excelente. Eu
consegui o resultado que almejava”, conta. A viagem de carro fazia parte
de um pacote no valor de R$ 2 mil pago a uma brasileira para receber os
cuidados após a cirurgia.

Alguns procedimentos chegam a custar menos da metade do
valor cobrado no Brasil – os mais procurados são lipoaspiração, lipoescultura,
rinoplastia, abdominoplastia e implante de silicone nos seios.

Mas
existem riscos. Além da possibilidade de ser operado por um profissional que
não é cirurgião plástico, há também o perigo de o procedimento ser feito em uma
clínica clandestina ou não haver cuidados adequados no pós-operatório,
problemas também registrados no Brasil.

No
ano passado, ao menos duas brasileiras morreram nos países vizinhos por causa
de complicações. O mesmo ocorreu no caso da bancária Lilian Calixto, de 46
anos, que morreu no Rio após uma intervenção nos glúteos realizada por Denis
Furtado, médico conhecido como “Doutor Bumbum”, que, segundo o
Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), não tinha
autorização para exercer medicina no Estado.

Como acontece a negociação

Médicos na Bolívia e na
Venezuela mantêm uma equipe dedicada a conquistar clientes no Brasil. Por meio
de divulgações nas redes sociais e até pessoalmente, nas áreas de fronteira, intermediários
brasileiros anunciam o trabalho do profissional, propagando fotos de supostos
resultados de procedimentos.

Esses intermediários geralmente ganham um percentual por
cliente conquistado, e costumam fechar um pacote incluindo transporte, alimentação,
estadia, cirurgia e cuidados durante o pós-operatório. Há outras opções para
quem deseja viajar por conta própria.

Além deles, ajudam na divulgação os
“cuidadores”, na maioria também brasileiros, que via de regra não
trabalham para um médico específico. Eles auxiliam na busca pelo profissional e
cobram até R$ 3 mil para oferecer suporte no período pós-operatório, que pode
levar 15 dias. O valor inclui alimentação, acompanhamento, estadia e ajuda
durante a recuperação. “É preciso tomar cuidado, porque existe o risco de
(os pacientes) serem captados por gente que trabalha por comissões e
porcentagens para arrumar pacientes para cirurgiões falsos”, alertou o
presidente da Sociedade Boliviana de Cirurgia Plástica, Javier Ruiz Barea.

Os pagamentos das cirurgias
plásticas são feitos em uma única prestação, em dólar ou real. No caso da
Bolívia, podem ser realizados antes de o paciente ir ao país ou na chegada. Na
Venezuela, precisam ser pagos antes, por meio de depósito bancário ou entregues
a um representante do médico.

As conversas sobre as plásticas, os valores e a forma de
pagamento acontecem no WhatsApp. Também são criados nos aplicativos grupos que
reúnem as pessoas que irão nas mesmas datas, nos quais também são publicadas
informações sobre as viagens e as cirurgias.

Segundo a Sociedade Brasileira
de Cirurgia Plástica (SBCP), a prática de levar grupos de brasileiros para
fazer cirurgias plásticas em outros países é ilegal. “Eles aliciam as
pessoas. Trata-se quase de um tráfico de pacientes. É um interesse
exclusivamente mercantil. Fazem do paciente objeto de mercancia”, afirmou
Denis Calazans, secretário-geral da entidade.

Uma pessoa que recebe pacientes na Venezuela, que pediu
para não ser identificada, nega que a prática seja criminosa. “Os médicos
brasileiros tentam nos denegrir. Eles costumam dizer que somos aliciadores, mas
eu não obrigo ninguém a vir. As pessoas chegam aqui por vontade própria. São
elas que me procuram”, diz.

Indústria do bisturi

Os grupos, que costumam ter
entre cinco e dez pessoas, geralmente viajam por meio de vans, ônibus ou carros
particulares.

Em boa parte das vezes, vivem nos Estados próximos à
fronteira – os pacientes que chegam à Bolívia vêm, em sua maioria, de Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Acre e Rondônia, enquanto no caso da Colômbia, de
Roraima ou do Amazonas.

Durante o pós-operatório, há a opção de ficar em espaços
pertencentes aos cuidadores. A atividade se tornou tão rentável que, para
alguns, se tornou a única fonte de renda – há quem tenha contratado
enfermeiros, cozinheiros e motoristas para atender aos pacientes.

Na Venezuela, os brasileiros costumam fazer as
intervenções em Puerto Ordaz, a cidade grande mais próxima à fronteira. No
país, o grande número de estrangeiros que procuram os serviços locais fez os
médicos criarem “promoções” para os locais, relata uma cuidadora. “Os
médicos passaram a cobrar metade do preço, em comparação àquilo que é cobrado
dos estrangeiros, para que eles (venezuelanos) façam as cirurgias”,
relata.

Em meio à profunda crise vivida na Venezuela, os
cirurgiões plásticos intensificaram a divulgação de seus trabalhos no exterior.

Segundo o cirurgião Enzo Troisi, a vinda de estrangeiros
cresceu nos últimos anos. “Hoje, além dos brasileiros, também recebemos
pacientes colombianos, dominicanos, americanos e europeus”, diz.

Formado há 20 anos, Troisi
afirma costumar operar de 8 a 12 brasileiros todos os meses. Não há
levantamentos sobre a quantidade de brasileiros que vão à Venezuela com esse
fim.

Uma cabeleireira brasileira, que pediu para não ser
identificada, diz que economizou R$ 6,5 mil ao fazer plásticas no país vizinho
em fevereiro passado. “Eu fiz lipoaspiração e coloquei prótese nos seios.
No Brasil, os procedimentos não sairiam por menos de R$ 17 mil. Paguei R$ 10,5
mil na Venezuela.”

Ela elogia os médicos. “Eles foram muito cuidadosos
e exigiram uma bateria de exames. Deu tudo certo comigo e com as outras meninas
do meu grupo”, conta. “Não me arrependo. Meus parentes diziam que eu
estava maluca, por causa das notícias ruins do país, mas a minha experiência
foi muito tranquila”, diz a mulher.

A Sociedade Brasileira de
Cirurgia plástica alerta que os riscos estão presentes não só nos procedimentos
em si, mas também no período pós-cirúrgico. Isso porque, afirma, há casos de
brasileiros que sofrem complicações por não aguardar o tempo necessário de repouso.
“Uma das características que percebemos, principalmente nas cirurgias
feitas na Venezuela, é que os brasileiros que têm complicações fazem a
recuperação em hospitais públicos no Brasil. Então, eles pagam particular em
outro país e se recuperam aqui, às custas do Estado brasileiro. Apesar disso, é
importante destacar que a saúde brasileira é universal e não se pode negar
assistência”, afirma Calazans.

Ajuda do câmbio

Na Bolívia, o mercado de
cirurgias plásticas teve uma grande expansão nos últimos anos. Lá, a cidade
mais procurada por brasileiros é Santa Cruz de La Sierra, também próxima com a
fronteira. “A taxa de câmbio faz com que os procedimentos fiquem mais
baratos para os brasileiros”, conta o presidente da Sociedade Boliviana de
Cirurgia Plástica.

Há dois anos, a vendedora
Josiane Roque, de 31 anos, foi à Bolívia para fazer uma lipoescultura e colocar
próteses de silicone nos seios.

Ela relata que pesquisou sobre
os médicos locais antes de fazer as intervenções, que custaram R$ 7,5 mil.
“Vi os resultados das cirurgias que eram feitas lá e gostei. Depois olhei
os valores e vi que pagaria metade do que gastaria aqui no Brasil.”.

A vendedora também contratou uma cuidadora para
auxiliá-la no pós-operatório. “Eu fiquei sete dias na Bolívia, após a cirurgia,
e só retornei quando estava bem. Gostei muito dos resultados, e indiquei para
todas as minhas amigas.”

O empresário e jornalista Peterson Prestes, de 36 anos,
afirma ter feito 22 procedimentos na Bolívia desde 2011, entre plásticas e
intervenções estéticas. “Fiz rinoplastia, apliquei botox várias vezes,
coloquei próteses nos glúteos, entre outras intervenções estéticas. Foi tudo
muito tranquilo e nunca tive nenhuma complicação”, diz.

Ele acredita que os mesmos procedimentos, caso feitos no
Brasil, não custariam menos de R$ 100 mil – na Bolívia, conta, saíram por pouco
menos de R$ 80 mil. “No total, paguei pouco menos de R$ 50 mil ao longo
desses anos. Eu consigo muitos descontos porque também trabalho como drag queen
e gravo vídeos divulgando algumas clínicas.”

Javier Barea alerta que os
brasileiros devem tomar cuidado para não contratar falsos profissionais. “Há
pessoas que não são médicas e se passam por cirurgiões plásticos. Existem
também médicos que não possuem tal especialidade e se oferecem para esse tipo
de intervenções. Por isso, orientamos que somente entrem em contato com
cirurgiões que pertençam à Sociedade Boliviana de Cirurgia Plástica.”

Casos trágicos

Embora as mulheres relatem
experiências positivas, nem sempre o sonho da cirurgia plástica termina bem.

O caso de morte mais recente foi o da manauara Orquídea
Catão Ponds, de 45 anos, que morreu horas depois de passar por uma
lipoaspiração na Venezuela, em dezembro.

Segundo o laudo pericial, ela teve tromboembolia pulmonar
– um coágulo se forma nas veias, entupindo a artéria do pulmão.

A família contesta o resultado
da perícia. “Tenho certeza de que não foi uma tromboembolia pulmonar. Eu a
acompanhei, estive lá no momento da cirurgia e vi tudo de errado que aconteceu
no dia”, relata uma parente dela, que pediu para não ser identificada.

Um ano antes, outra brasileira havia morrido após ser
operada pelo mesmo médico, o oncologista Oscar Hurtado. Dioneide Leite, de 36
anos, se submeteu a uma abdominoplastia com ele. O nome de Hurtado não consta
na lista de profissionais inscritos na Sociedade Venezuelana de Cirurgia
Plástica (SVCP).

Em setembro do ano passado, a mato-grossense Janeane
Rodrigues da Silva Fidélis, de 42 anos, morreu em decorrência de cirurgias
plásticas feitas na Bolívia. Ela sofreu uma parada cardíaca dois dias depois de
se submeter a lipoaspiração e abdominoplastia.

O médico responsável pela
cirurgia, o cirurgião plástico Hernán Justiniano Grillo, não respondeu aos
pedidos para entrevista. Na época, argumentou que a paciente não relatou, no
pré-operatório, que tomava diferentes tipos de medicamentos, dentre eles um
para problemas cardíacos.

De acordo com a Sociedade Boliviana de Cirurgia
Plástica, o médico está inscrito na entidade. A entidade afirma que todos os
casos de morte são investigados pelo Ministério Público da Bolívia, mas são
conduzidos em sigilo.

Falta de dados

A Sociedade Brasileira de Cirurgia
Plástica fez uma representação na Procuradoria-Geral da República sobre o
“turismo médico”, na qual relatou as mortes das brasileiras. Segundo
a PGR, não foram encontrados indícios de ilegalidades, e procedimento de
investigação acabou arquivado.

Nos últimos cinco anos, foram registradas ao menos oito
mortes de brasileiras na Venezuela em decorrência de cirurgias plásticas. Na
Bolívia foram ao menos sete em 20 anos, segundo a Sociedade Boliviana de
Cirurgia Plástica.

Não há dados sobre as mortes e
complicações ocorridas após cirurgias feitas no Brasil, como a da bancária
operada pelo “Doutor Bumbum”. Apesar dos vários casos relatados na
imprensa ao longo dos anos, o Ministério da Saúde, o Conselho Federal de
Medicina e a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica afirmam que não possuem
estatísticas sobre óbitos ou sequelas graves.

No Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do
Ministério da Saúde, não há apontamentos de mortes em razão de cirurgias
plásticas. Os casos normalmente são notificados de formas distintas, como
infecção ou parada cardiorrespiratória, pois não há uma especificidade para as
intervenções estéticas.

O dermatologista Érico Pampado Di Santis defendeu uma
tese de doutorado que tinha como tema as mortes em procedimentos de
lipoaspiração no Brasil. Ele relata que teve dificuldades para encontrar dados
sobre os óbitos relacionados às intervenções. “Obtive pela imprensa (os
dados) em uma busca hercúlea de 10 anos. É mais difícil ainda conseguir as certidões
de óbito”, comenta.

Com base nas pesquisas para a
tese, Santis apurou que foram registradas, no Brasil, 102 mortes, de 1987 a
2015, em decorrência de lipoaspiração, em alguns casos associadas a outros
procedimentos.

Segundo o dermatologista, não há como afirmar que as
intervenções nos países vizinhos são mais arriscadas que as feitas no Brasil. “Não se pode dizer que os riscos são
distintos, pelo motivo de não termos no Brasil, e também no mundo, dados
consistentes sobre esses casos.”


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