Picadas de escorpiões passam a matar muito mais que cobras no Brasil

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 9 de julho de 2018 às 20:45
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:51
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Mortes por picadas do escorpião chegaram a 184 em 2017, a maioria delas em São Paulo e Minas Gerais

O tratorista Valdomiro Vieira dos Santos Neto, 34 anos,
sempre esteve atento às cobras. Trabalhador de uma usina de cana-de-açúcar na
região de Miguelópolis, ele sabe da ameaça venenosa que representa uma
cascavel, por exemplo.

Mas
não imaginava que um bicho peçonhento muito menor teria o poder de devastar sua
família. Há um mês, a picada de um escorpião causou a morte de Felipe, seu
filho de 3 anos. O menino foi atacado na mão enquanto brincava com um
caminhãozinho dentro de casa. “A gente tem que evitar entrar em
contato com um animal desses”, disse Valdomiro, bastante abalado.
“Mas eu não tinha essa instrução.”

Responsável por 184 mortes no
Brasil em 2017, o escorpião ultrapassou as serpentes no topo do ranking de
animais peçonhentos que mais matam no Brasil, de acordo com dados do Ministério
da Saúde. No mesmo ano, foram registrados 105 casos de morte por veneno de
cobra.

De 2013 para cá, aumentou em 163% o número de óbitos
causados por esse artrópode; naquele ano, eram apenas 70. A proporção no
aumento das mortes é muito maior do que a dos casos notificados de
escorpionismo, ou seja, situações em que o escorpião injeta veneno em uma
pessoa através do ferrão, sem necessariamente levá-la à morte. Eles somaram
125.156 no ano passado, diante de 78.363 em 2013, um aumento de quase 60%.

Os estados de São Paulo e Minas Gerais exibem a situação
mais alarmante nas tabelas do Ministério da Saúde. Ambos registraram,
respectivamente, 26 e 22 mortes por picada de escorpião em 2017.

A mulher de Valdomiro, a dona
de casa Camila de Oliveira Diniz, 28 anos, conta que, no dia em que seu caçula
foi picado, o marido havia arrastado um armário para consertar uma das portas
do móvel. Ela supõe que o escorpião, bicho que gosta de lugares escuros e
úmidos, estivesse entocado ali atrás.

Assim
que o menino reclamou que “o caminhãozinho tinha picado a mão”,
Valdomiro viu um escorpião amarelo de costas escuras subindo pela parede, perto
do brinquedo. Matou o animal com um chinelo e o colocou num papel. Correu com o
filho e o bicho para o pronto-socorro do município, a cerca de cinco minutos de
carro da sua casa.

O pronto-socorro de
Miguelópolis não tinha soro antiescorpiônico quando Felipe e seus pais chegaram
ali, no dia 5 de junho, por volta das 15h. Eles foram então encaminhados em
ambulância para Ituverava, a 35 quilômetros de distância, onde o menino foi
medicado. “Depois de tomar o soro, ele parecia bem, conversou, perguntou
dos cachorros, a gente tinha certeza de que ia trazer ele pra casa”, diz a
mãe. Ela recorda que à noite, no entanto, ainda no hospital, o filho vomitou,
começou a piorar. Ela logo percebeu que o estado de saúde dele se agravara por
causa da movimentação da equipe médica. Felipe chegou a receber massagem
cardíaca, mas seu corpo deixou de reagir à 1h da manhã. “Deus recolheu o
Felipe”, disse Camila.

O
casal tem outros dois filhos, de 13 e 10 anos, e não se conforma com o fato de
a cidade em que mora não dispor do antídoto. “Se o soro estivesse mais
perto e mais à mão…”, afirma a mãe. Lembrando que um rapaz, conhecido de
Valdomiro, tinha tomado recentemente uma picada de escorpião na cabeça,
completou: “Está cheio deles por aqui. Se eu posso dizer algo para os pais
é que façam uma busca efetiva pela casa, dia sim, dia não, atrás dessa
criatura.”

A
coordenadora de saúde do município de Miguelópolis, Adib Abrahão, reconheceu que
há 15 anos a cidade não tem soro antiescorpiônico disponível para seus
cidadãos, mas que estaria “vendo todo o protocolo” para adquirir o
medicamento.

A
população de Miguelópolis tem por prática colocar os escorpiões que mata em
garrafas PET ou vidros com álcool. Suas coleções pessoais são arregimentadas no
banheiro, na cozinha, na área de serviço, nas dobras de lençóis e mosquiteiros,
no meio do lixo ou do material de construção estocado perto ou dentro de casa.
A maioria dos casos é de picadas nos pés e nas mãos, seguidas de dor intensa no
local, que costuma irradiar para os membros. Por vezes, aparecem vermelhidão,
inchaço e/ou febre, sintomas ainda considerados leves.

Em
casos mais graves, porém, o quadro pode evoluir para náuseas, vômitos, dor
abdominal, sudorese excessiva, taquicardia, salivação fora do normal, agitação
ou prostração, perda do controle cognitivo, insuficiência cardíaca, edema
pulmonar e choque. “O veneno do escorpião tem uma ação neurotóxica,
afetando o sistema nervoso central”, diz a bióloga Gabriela Cavalcanti,
que trabalhou com escorpiões durante toda a sua graduação na Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE).

A recomendação, em caso de
ferroada, é procurar o serviço de saúde mais próximo. Limpar o local da picada
com água e sabão pode ser uma medida auxiliar, desde que não atrase a ida da
pessoa ao posto de atendimento. Não se deve fazer torniquete, aplicar qualquer
substância no ponto da picada nem fechá-lo com curativo, para não favorecer
infecções.

Pernambuco,
onde mora Cavalcanti, é o terceiro estado com maior número de mortes por picada
de escorpião. No ano passado foram 9 delas, segundo relatório epidemiológico do
Ministério da Saúde.

Onde tem barata, tem escorpião

Em janeiro de 2018, um menino,
também de três anos, teria sido vítima do animal peçonhento enquanto assistia à
televisão sentado no sofá de casa, em Jaboatão dos Guararapes, região
metropolitana do Recife. A mãe não entendeu, de imediato, o porquê do choro da
criança. Só quando um dos dedinhos do garoto passou a ficar roxo ela o levou
para o hospital. Moradores do bairro em que mora a família do garoto, Cajueiro
Seco, afirmaram ser comum flagrar o bicho nas residências, onde também se
multiplicam baratas, para as quais pouco se dá bola. “Mas onde prolifera
barata, tem escorpião”, afirma a infectologista Fan Hui Wen, gestora
responsável pelo Laboratório de Artrópodes e pelo Núcleo Estratégico de Venenos
e Antivenenos do Instituto Butantan, em São Paulo. Baratas são um dos alimentos
preferidos dos escorpiões.

Com
especialização em saúde pública, a médica cansou de ver casos em que houve
demora no diagnóstico por problemas de comunicação com crianças pequenas – que
ainda não conseguem verbalizar o que teria causado o incômodo que sentem. Só
quando começam a vomitar, por exemplo, é que os pais procuram o pronto atendimento.

A velocidade de ação do veneno
varia de pessoa para pessoa, mas a vítima pode morrer duas horas depois de
picada. “Um dos motivos pelos quais o óbito por animal peçonhento choca
muito é por ser abrupto”, diz Wen. “A pessoa está bem, brincando ou
trabalhando, e de uma hora para outra entra num quadro agudo.”

Crianças
abaixo de 7 anos e idosos com saúde debilitada são os que exigem mais atenção,
por apresentarem maior risco de alterações sistêmicas. Trabalhadores da
construção civil, de madeireiras e de distribuidoras de hortifrutigranjeiros
também estão mais vulneráveis ao ataque porque manuseiam objetos e alimentos
nos quais o escorpião pode se alojar.

Compra de doses

O
Ministério da Saúde informa que foram firmados contratos com os Institutos
Butantan e Vital Brazil para o fornecimento de 62 mil frascos do soro
antiescorpiônico para todo o país neste ano. O Butantan, em São Paulo,
responderia por 44 mil frascos (70,97% do total) e o Vital Brazil, com sede em
Niterói, pelos 18 mil restantes. Segundo a pasta, o ministério passa os frascos
para os governos, que os repassam aos municípios.

A médica Wen destaca, ainda,
que o Butantan recebeu a encomenda ministerial de 35 mil frascos de soro
antiaracnídico, um combinado que neutraliza picadas de escorpião e de duas
aranhas venenosas, a marrom (Loxosceles) e a armadeira (Phoneutria).

Uma pessoa picada por
escorpião pode tanto receber o antiescorpiônico quanto o antiaracnídico, mas o
inverso não funciona. “Nesse caso, a prioridade do antiaracnídico é para
as picadas de aranhas”, atesta. Em 2017, segundo dados do Ministério da
Saúde, foram notificados 32.859 casos de acidentes com aranhas, culminando em
30 mortes.

Wen
insiste que nem todos os casos de escorpionismo evoluirão para um quadro
sistêmico. Cerca de 15% precisarão do soro, justamente por apresentarem os
sintomas mais graves. Quando isso se manifesta, recomenda-se usar três frascos
por paciente. “Tem de ser de uma vez só. Não adianta neutralizar metade e,
daqui a três horas, aplicar o soro novamente, porque o restante do veneno que
ficou circulando no corpo vai continuar agindo.” Por ser uma medicação
intravenosa, é necessário que seja ministrado em ambiente hospitalar, cuja
equipe precisa avaliar se, além do soro, é recomendável um cuidado adicional.

O
soro é produzido a partir do veneno do próprio escorpião. No Butantan, a fonte
são cerca de 15 mil desses aracnídeos, todos alimentados em cativeiro. A imensa
maioria, 99% deles, pertence à espécie Tityus serrulatus, a mais comum no
Sudeste, exatamente a que teria atacado Felipe. Mas o soro funcionaria também
para o Tityus stigmurus, que predomina no Nordeste do país. Ambos têm uma
carapaça amarelada.

Proliferação urbana

Gabriela Cavalcanti explica
que um dos motivos da multiplicação acelerada do serrulatus e do stigmurus é
que eles podem se reproduzir tanto pela forma sexuada quanto por partenogênese,
isto é, quando a fêmea não necessita do macho para originar filhotes. A segunda
maneira, segundo a bióloga, é a preferencial dos animais nos centros urbanos
pela eficácia no ambiente. “A prole nasce idêntica à mãe, são portanto
todas fêmeas, e com a mesma capacidade de se reproduzirem sozinhas”, diz a
bióloga. Um exemplar dessas espécies vive, em média, quatro anos. Cada fêmea
pode gestar três a quatro vezes ao ano, e cada prole de serrulatus chega até a
20 filhotes. A taxa de natalidade do stigmurus é mais baixa: de 8 a 14
filhotes.

Para os especialistas, o
motivo principal da disseminação desses animais no país é a ocupação irregular
e desordenada das cidades, agregada a um saneamento básico precário e as
toneladas de lixo que se alastram pelo meio urbano.

A
preservação de inimigos naturais dos escorpiões, como corujas, lagartos, sapos
e galinhas, está no rol das prevenções efetivas apontadas pelos especialistas.
Já os inseticidas, por outro lado, são condenados. Borrifá-los pela casa não só
pode afetar cachorros e gatos, como desalojar os escorpiões de seus
esconderijos e aumentar o número de acidentes.


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