Para Sempre…

  • EntreTantos
  • Publicado em 24 de outubro de 2017 às 18:34
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:27
compartilhar no whatsapp compartilhar no telegram compartilhar no facebook compartilhar no linkedin

Se ele ainda recordasse ainda uma canção, certamente cantaria agora, tão contente estava. Ao invés disso, velhas notas que ele sequer recordava a quem pertenciam. Não tivera qualquer pressa ao se barbear, aliás, quando os dias se esvaem sem que se possa acompanha-los, se descobre que a eternidade nunca é demasiada longa, nos momentos em que se retoca o próprio ser. Conferira duas vezes os lóbulos, onde costumava esquecer resquícios de espuma de barbear. Deslizara o pente por entre os fios ralos, dos cabelos que um dia foram negros, mas que agora, se assemelhavam a chumaços de algodão colados em tufos no crânio. A imagem refletida no espelho até que não lhe desanimara de todo. É óbvio que sua tez pálida e maculada por sinais da idade lhe emprestava um aspecto frágil, mas, sentia-se jovem. Girara a aliança pelos nós do dedo, que mais parecia graveto seco, onde uma veia azulada se destacava. Sem cessar o assovio, espanara o terno, no qual, todo ano ele temia não caber mais. E para requintar ainda mais sua figura elegante, atara uma flor na lapela. Somente ao sair decidira-se pela bengala e chapéu coco. Seus passos eram lentos, porém vigorosos. Na rua, sua figura se assemelhava à uma versão envelhecida do próprio Don Lockwood, em “Cantando na chuva”. No caminho, dedicara todos os seus pensamentos à sua amada. Sua eterna namorada. Foi quando lhe ocorrera comprar flores, afinal, foi justamente avalizado por flores que ele a conquistara. E sua alma transbordara ao recordar aquele dia, que já não era mais tão claro em suas lembranças. Se lembrara do quanto ela estava linda naquele dia, e como coraram as maçãs de seu rosto, quando trêmulo de emoção ele lhe empurrara as flores, se desculpando pela falta de jeito.

            -Uma flor por um beijo. –Dissera ele da forma mais patética e atrevida, antes de sentir o calor dos lábios dela umedecerem os seus. Pássaros gorjeavam nas árvores e um mundo colorido explodira, pintado especialmente para aquela ocasião.

             Permitira-se caçoar de suas próprias pernas, que fraquejavam sempre que a esperava, como há cinquenta anos atrás, no altar. Não era o pai dela que a conduzia agora, por entre um cenário verdejante. Era uma jovem enfermeira, que sussurrara algo ao ouvido de sua amada, antes de ambas sorrirem.

            O tempo vinha sendo impiedoso com ela. Sua pele toda se assemelhava a papelão amarrotado, os longos cabelos negros de outrora perderam volume e cor. Eram agora folhas morrendo ressecadas numa árvore amarrotada. Porém, ela claramente ignorava a ruina de seu corpo com um sorriso, fraco, mas, constante. Seu perfume não era mais tão adocicado e sedutor, mas, ele ainda adorava aspirar sua presença. Olhos que se conheciam bem e já compartilharam inúmeras situações, se encontraram. Seres humanos emoldurados pelo tempo. Logo uma expressão encabulada vestira o rosto de sua simpática amada. Seria o nó da gravata outra vez? Será que engordara muito? E naquele doloroso momento ele implorou intimamente para que fosse qualquer destas opções.

            -Quem é o senhor? – E sua voz saíra simpática e fraca. Mais um sussurro, lutando contra as limitações vocais.

            Ele sentira uma lágrima quente ondular pela superfície de seu rosto. A enfermeira lhe emprestara uma expressão entre constrangida e solidária, ao que ele respondera com o mesmo sorrisinho de “tudo bem”, como nos anos anteriores.

            -É difícil. Ela não se lembra mais. –Tentou a enfermeira.

            -Mas, eu me lembro muito bem dela. É o que importa.

*Essa coluna é semanal e atualizada às quartas-feiras.


+ zero