O que o futebol brasileiro tem a aprender com o futebol inglês

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 1 de março de 2018 às 09:14
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:35
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Neste começo de temporada futebolística no país do “melhor futebol do mundo”, são inevitáveis algumas comparações com outros países, e como elas devem ser feitas em relação a patamares superiores, que estimulem mudanças positivas, o primeiro nome que vem à cabeça de todo torcedor é a Inglaterra. Basta lembrar que o Campeonato Brasileiro encerrado há dois meses teve média de gols de 2,43 e a Premier League inglesa, terminada seis meses antes, teve média de 2,80 gols por partida. A taxa de ocupação dos estádios brasileiros foi de 66%, a dos ingleses de 95,1%. A média de público por jogo no Brasil foi de 16 mil, contra 36 mil na Inglaterra. Os jogos do Campeonato Brasileiro são transmitidos para cerca de 60 países, os do inglês para 210. O Corinthians, por ter sido campeão de 2017, recebeu R$ 18 milhões; o Chelsea, pelo título de 2016-2017, ficou com quase 38 milhões de libras (cerca de R$ 171 milhões). Mas há 25 anos a situação do futebol inglês não tinha nada da riqueza e do glamour de hoje. No plano do jogo, predominava o secular e típico “kick and rush”, grandes balões que os toscos defensores despachavam para a frente esperando que fossem alcançados por um dos toscos atacantes de sua equipe. Os choques físicos eram frequentes, as jogadas trabalhadas raras. No plano do público, a frequência era grande, mas com pequena participação de mulheres e crianças, pois os estádios eram vetustos, sujos e inseguros: em 1985, o fogo matou 56 torcedores no estádio do Bradford City; em 1989, em Sheffield, 96 espectadores morreram asfixiados ou esmagados. Em todos os estádios, e redondezas, torcedores violentos, os hooligans de triste memória, enfrentavam-se sem pudor e sem controle. Por conta deles, desde 1985 os clubes ingleses estavam banidos das competições europeias depois de torcedores do Liverpool terem provocado a morte de dezenas de seguidores da Juventus quando da final da então Copa Europeia dos Clubes Campeões. No plano econômico, as receitas de bilheteria eram apenas modestas, à altura da qualidade dos palcos e dos espetáculos. O que se arrecadava com televisão, publicidade e produtos licenciados era pouco. No plano da marca, portanto, as competições inglesas não exerciam nenhuma atração fora das ilhas britânicas. O diagnóstico da situação todo mundo conhecia, mas por inércia e interesses antigos ninguém fazia nada para alterar a estrutura arcaica e viciada da Football League First Division, que desde o século 19 controlava as várias divisões do futebol profissional inglês. A transformação começou em 1988, num almoço em Londres entre o presidente da ITV Sport, Greg Dyke, e o vice-presidente do Arsenal, David Dein, fãs do futebol interessados em obter maiores faturamentos para suas instituições. A ideia de Dyke era simples e revolucionária para a época, contrária à filosofia da Football League: convencer os cinco grandes clubes de então (Arsenal, Everton, Liverpool, Manchester United e Tottenham) a venderem os direitos de transmissão televisiva de suas partidas do campeonato. A proposta interessou a Dein, acionista importante do Arsenal, e ele intermediou os contatos com os outros protagonistas. Dessas reuniões ficou claro que o único caminho era romper com a antiquada Football League e criar uma nova entidade, com outro perfil, mais moderno e mais adequado aos interesses dos clubes. Em meados de 1991, esse acordo foi assinado pelos clubes da primeira divisão e, apesar das ameaças jurídicas da Football League, em maio de 1992 foi criada a Premier League. Trata-se de empresa privada, gerida profissionalmente, que assina os contratos mais proveitosos para os sócios, isto é, os clubes (22 em 1992, 20 atualmente, os integrantes da primeira divisão). Se no primeiro contrato, de 1992 a 1997, cada um dos 60 jogos televisionados por temporada rendeu à liga 600 mil libras, o contrato 2016-2019 prevê a transmissão por ano de 168 jogos, cada um deles por 10 milhões de libras. Acompanhando esse espírito, em 2001 foi criada uma empresa (PGMOL, Professional Game Match Officials Limited) que gere a arbitragem profissional. Uma equipe de preparadores físicos, fisioterapeutas, psicólogos e técnicos de arbitragem treina, padroniza e avalia a atuação de 109 árbitros (18 deles profissionais em tempo integral) e 206 assistentes visando garantir a justiça esportiva e o nível dos espetáculos. Um dos fatores do sucesso da Premier League, reflexo da cultura política nacional, é a mecânica de funcionamento, bastante democrática. Nas assembleias da sociedade, cada clube tem direito a um voto, sendo necessária maioria de dois terços para a tomada de decisões de maior peso. A repartição dos direitos de televisão, recebidos da Inglaterra e do exterior, é bem equilibrada: uma metade dessas receitas é fixa, dividida igualmente por todos (o que garante um mínimo bastante apreciável mesmo aos clubes de menor expressão); a outra metade variável, conforme duplo critério: o número de partidas transmitidas de cada clube e o mérito esportivo, ou seja, a classificação final no campeonato. Devido a essa fórmula, o Chelsea teve direito a 151 milhões de libras (cerca de R$ 680 milhões) e o último colocado, o Sunderland, ficou com 93,4 milhões (R$ 420 milhões), isto é, diferença entre eles de 60%. Entre nós, onde até agora a cota de televisão é distribuída por um sistema de oito faixas, os clubes da primeira delas receberam R$ 170 milhões cada um e os da última R$ 20 milhões, ou seja, um fosso de 800%! Sem dúvida, foi o acordo da Premier League com a televisão que alavancou os clubes ingleses, porém tanto quanto essa receita revelou-se fundamental a mentalidade empresarial que a nova fórmula implantou. Estádios foram construídos ou renovados, jogadores e treinadores importantes foram trazidos do exterior, criaram-se políticas para estimular os rendimentos de bilheteria, patrocínio e merchandising. Na temporada 2016-2017, segundo dados da Deloitte, a receita total dos clubes da Premier League foi de 486,5 milhões de euros, contra 271,2 milhões da Bundesliga alemã e 243,7 milhões de La Liga espanhola. O Manchester United, clube mais rico do mundo, teve receitas de quase 690 milhões de libras. Dos 20 clubes da primeira divisão inglesa, 17 fecharam o ano com lucro. Dos 20 clubes com maiores receitas no mundo, 8 são ingleses. Graças a esse cenário, em 2017-2018 o Manchester City, por exemplo, pôde dispender mais de 250 milhões de euros em contratações e mesmo um clube modesto como o Huddersfield investiu em jogadores 43 milhões de euros (R$ 172 milhões), valor fora do alcance até dos grandes clubes brasileiros. O volume do negócio futebol mudou o próprio perfil institucional dos clubes. Antes, geralmente seus proprietários eram industriais ou comerciantes cujas fortunas foram constituídas na própria cidade ou região que dava nome ao clube e à qual eles se sentiam muito ligados. Depois, milionários de diferentes horizontes passaram a ocupar a cena, norte-americanos (Arsenal, Manchester United), russos (Chelsea), emiradenses (Manchester City), tailandeses (Leicester), chineses (Aston Villa, West Bromwich). Dos 20 clubes que disputam a liga em 2017-2018, apenas 7 continuam em mãos britânicas. Todos os clubes campeões no século 21 são de propriedade estrangeira. Além de razões econômicas, a explicação reside no fato de a liga inglesa mesmo não sendo necessariamente a mais técnica, ser a mais empolgante, com público entusiasta, bons estádios quase sempre lotados, jogadores e técnicos de ponta de variadas nacionalidades. Enquanto na rodada inaugural da Premier League, em agosto de 1992, o conjunto das equipes utilizou somente 11 jogadores estrangeiros, em dezembro de 2009 pela primeira vez numa partida de campeonato (Portsmouth contra Arsenal) não houve um único titular inglês em campo. O fenômeno de contratações estrangeiras possibilitadas pelos novos recursos passou a ocorrer não somente nos grandes clubes: o Blackburn contra West Bromwich Albion jogado em janeiro de 2011 reuniu atletas de 22 nacionalidades diferentes. Em 2016, a larga maioria (61,8% de acordo com o CIES Football Observatory) dos jogadores inscritos nos clubes da Liga inglesa era de origem estrangeira. O campeonato de 2017-2018 começou tendo no comando técnico dos 20 clubes 13 treinadores estrangeiros. Eles estiveram à frente dos seis clubes que encabeçaram a classificação no primeiro turno. Aliás, nos 25 anos da Premier League foram campeões o escocês Alex Ferguson 13 vezes, o francês Arsène Wenger três vezes, o português José Mourinho três vezes, além de quatro técnicos italianos (Roberto Mancini, Carlo Ancelotti, Claudio Ranieri, Antonio Conte), um chileno (Manuel Pellegrini), outro escocês (Kenny Dalglish) e daqui a três meses muito provavelmente um espanhol (Pep Guardiola). Todos os dados acima são bem conhecidos, porém nunca é demais insistir sobre eles porque aparentemente estão pouco internalizados pelos protagonistas do futebol brasileiro. É verdade que se há importantes diferenças de cultura e de tamanho da economia entre Brasil e Inglaterra, ainda assim o modelo inglês pode sinalizar certos caminhos factíveis. Um deles é a necessidade de se deixar de lado o amadorismo, as vaidades pessoais e as paixões clubísticas juvenis, com os dirigentes compreendendo que os interesses de todos os clubes estão interligados. A solidariedade do acordo inglês é que garante a competitividade e atratividade do seu campeonato, ao contrário de ligas elitistas. Na Espanha, por exemplo, Barcelona e Real Madrid ficaram em conjunto com 50% das receitas de televisão e 90% dos títulos nacionais nos últimos dez anos. O desequilíbrio financeiro (o clube que mais recebe ganha dez vezes mais do que o menos aquinhoado) não é alheio à taxa de ocupação dos estádios, bem inferior (72,3%) à inglesa (95,1%), alemã (93,9%) e holandesa (86,8%) em 2016-2017. No Brasil, depois de anos de atraso, muita discussão e muito egoísmo míope, foi dado o primeiro passo com o acerto dos direitos televisivos para as temporadas 2019-2024: 40% serão divididos equitativamente entre os clubes, 30% pelo rendimento esportivo e 30% conforme a audiência. Em teoria, é possível que isso venha com o tempo a diminuir a hemorragia que debilita as competições brasileiras dentro de campo, ou seja, a exportação (muitas vezes precoce) dos melhores futebolistas. Estes não se interessam em imigrar apenas por dinheiro, gostam de atuar ao lado de grandes jogadores e de medir forças com colegas de qualidade. Valorizam competições bem organizadas, de calendário racional, bem arbitradas e jogadas em bons gramados. Do ponto de vista do público, de investidores e de patrocinadores, a partir do momento em que o produto oferecido for mais atraente (times de qualidade em estádios confortáveis proporcionando bons espetáculos), pode-se criar um círculo virtuoso de maior procura, maiores receitas, produto ainda melhor, em consequência da expansão da procura e das receitas, reinvestidas em novas melhorias e assim por diante. Se em qualquer caminhada o primeiro passo é sempre condição evidentemente necessária, ele não é suficiente. Distribuir de forma equitativa os direitos de transmissão por si só não aumenta o rendimento de todos os clubes, para alguns pode mesmo diminuir. Em cada um deles é essencial a administração racional, planificada, sem arroubos passionais, profissional, em suma. Para o conjunto dos clubes, aumentando seu poder de negociação institucional e contratual, é indispensável uma organização em bloco, esquecendo rivalidades mesquinhas, ressentimentos históricos e antipatias pessoais. Constituídas como Liga, as agremiações ganham novo peso e a tendência é de maior profissionalização, passando – de forma mais eficiente, supõe-se – a organizar e gerir as competições das quais são as protagonistas eaos grandes interessadas. Isso implica, terceiro e decisivo passo, talvez o mais difícil diante das condições históricas do futebol brasileiro e das variadas relações espúrias urdidas ao longo de décadas, uma profilaxia indispensável – a Liga de clubes cuidando das competições nacionais, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) como órgão oficial que vincula o futebol brasileiro à Fifa (Federação Internacional de Futebol) ocupando-se das seleções e das competições internacionais. A historicamente corrupta CBF perderia assim seus tradicionais meios de pressão e ingerência, o controle sobre o calendário interno, a arbitragem, os tribunais de justiça desportiva. É de se imaginar que tendo sobre a Inglaterra a dupla vantagem da fartura de “pé-de-obra” de qualidade e do tamanho da população, o futebol brasileiro de clubes possa sair do clichê e efetivamente vir a ser o melhor do mundo.

*Esta coluna é semanal e atualizada às quintas-feiras.


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