O que há por trás da rotina estressante de atendentes de telemarketing

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 14 de julho de 2018 às 20:04
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:52
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Ouvir reclamações, xingamentos e até ameaças – tudo com tempo para resolver o problema do cliente

Imagine um emprego em que sua função é passar o dia todo ao telefone. Não
é exagero, é o dia todo mesmo, com direito a apenas uma pausa de 20 minutos
para a refeição e outras duas de 10 minutos cronometradas – assim como as idas
ao banheiro.

Do outro lado da linha, estão clientes irritados pelos problemas
causados por uma empresa da qual muitas vezes você não é funcionário e sobre a
qual não tem qualquer responsabilidade. No entanto, naquela ligação, é você
quem personifica todos os erros e os defeitos dela e, por causa disso, acaba
sendo o alvo da ira de todos aqueles consumidores insatisfeitos.

Os xingamentos vão desde “burro”, “incompetente”,
“ignorante” a até “você não presta para nada, por isso nunca vai
deixar de ser operador de telemarketing”. Desligar o telefone não é uma
opção, então a única alternativa é escutar os insultos calado. E não dá tempo
de respirar. Enquanto você tenta esquecer as ofensas que acabou de ouvir, o
telefone toca de novo, e é preciso disfarçar rapidamente e dizer com a voz
simpática: “Bom dia, senhor, em que posso ajudar?”.

Esse é o dia a dia de mais de um milhão de trabalhadores brasileiros que
atuam como operadores de telemarketing, recebendo todas as reclamações dos
serviços de atendimento ao consumidor das empresas no país e também ligando
para possíveis futuros clientes para oferecer serviços – que, muitas vezes, não
são desejados.

O
profissional dessa área é frequentemente tachado de “chato” e
“odiado” pelas pessoas. Mas, se a realidade é difícil para quem
precisa de seus serviços, pode ser ainda pior para quem vive na pele essa rotina.
A média de ligações diárias costuma ultrapassar as centenas (cerca de 300 nas 6
horas que trabalham conectados) – enquanto a média salarial dificilmente
ultrapassa um salário mínimo, com algumas remunerações variáveis a depender das
metas a serem batidas.

A profissão é comum principalmente entre os jovens e é considerada porta
de entrada para o mercado de trabalho para boa parte deles. Para exercer a
função, os interessados costumam passar por alguns dias (às vezes semanas) de
treinamentos que variam entre aulas de português e de boas maneiras e uma parte
específica sobre os procedimentos da empresa que irão atender. Em geral, sobram
protocolos para eles cumprirem e frases padrão para repetirem.

Essa repetição, inclusive, é um dos fatores que contribuem para o nível
de estresse na profissão. O fato de não terem autonomia para resolver alguns
problemas faz com que os clientes se irritem mais e, consequentemente,
descontem nos atendentes.

Diante desse cenário, o número de doenças diagnosticadas em pessoas que
exercem essa função é crescente. Somente na Região Metropolitana de São Paulo,
de acordo com dados do Sindicato dos Trabalhadores em Telemarketing
(Sintratel), existem aproximadamente 100 mil profissionais nesse segmento.

Dados do sindicato relacionados a doenças do trabalho apontam que 36%
sofrem de lesão por esforço repetitivo (LER), 30% de transtornos psíquicos e
25% apresentam alguma perda auditiva ou de voz.

O diretor-executivo do Sindicato Paulista das Empresas de Telemarketing
(Sintelmark), Stan Braz, diz que os dados de trabalhadores doentes por causa da
profissão foram inflados pelo sindicato dos trabalhadores. “Esses casos
ocorrem, mas não chega a 10% do total de funcionários, senão ninguém estaria
trabalhando. As empresas seguem à risca as normas que regulamentam a profissão
para evitar esses casos. Elas respeitam os períodos de descanso, relaxamento e
boa parte ainda oferece ginástica laboral e massagem durante o
expediente”, afirma.

Segundo ele, a maior parte dos casos de problemas psicológicos e
auditivos dos funcionários são causados por problemas externos às empresas de
telemarketing. “Nós estamos vivendo um
momento de pressão social e econômica que abala todo mundo e isso prejudica. Já
a perda de voz e auditiva é explicada em grande parte porque você vê a molecada
com fone de ouvido o dia inteiro na rua com o volume alto e claro que isso
influencia”, diz o diretor-executivo do sindicato que representa as
empresas.

Cristiana, atendente que pede para não ter o nome divulgado, não chegou
a notar pesadelos, mas sofria com insônia. Até que um dia o estresse chegou a
tal nível que ela teve uma crise enquanto estava no trabalho. “Eu estava
falando com cliente e falei para o meu amigo do lado: estou passando mal, acho
que vou morrer. Larguei o telefone e nem sequer conseguia sair da cadeira”,
relatou. “Passei mal assim duas vezes. Descobri que estava com síndrome do
pânico, o médico me afastou e até hoje eu tomo remédio por causa disso.”

As doenças psíquicas não são as únicas que aparecem em decorrência da
profissão. Renan Mattos, por exemplo, trabalhou por dois anos como operador de
telemarketing e perdeu 30% da audição. “Tive uma crise de pânico, fui
afastado e aí comecei a perceber a perda auditiva. Agora foi constatado que
minha audição de um ouvido está prejudicada”, disse.

“O jeito de organizar o trabalho do operador de telemarketing é o
grande problema. Essa vigilância constante do trabalhador em relação ao tempo
das ligações, por exemplo, é um dos fatores do acúmulo do estresse. E aí acaba
que você coloca pessoas sadias e jovens nesse mercado para depois ter uma
grande quantidade de adoecidos”, explicou o médico do trabalho e mestre em
Saúde Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Airton Marinho. “Ninguém fica mais do que um ano e meio nessas empresas. Como atendente,
é raro ter alguém com mais do que esse tempo. As pessoas são tratadas como
substituíveis, as empresas já contam com isso, trabalham com meta de
rotatividade de 12% ao mês.”

Tempo cronometrado e pressão por metas

A rotina cronometrada, com até mesmo as idas ao banheiro sendo
“controladas”, é um dos fatores que contribuem para o estresse do
atendente de telemarketing.

A jornada de trabalho deles é menor do que a de outras profissões (são
“apenas” 6h20), mas dentro desse tempo há apenas 20 minutos
reservados para uma refeição e outros 20 (separados em dois tempos de 10
minutos cada) para uma pausa nas ligações.

As idas ao banheiro, em teoria, são livres, mas há relatos de lugares
que também limitavam as necessidades fisiológicas em uma pausa de 5 minutos.

Quando sentiam a vontade apertar, eles precisavam apertar o botão para
solicitar a pausa – assim, não receberiam ligações por aquele momento – e
corriam para o banheiro. Na volta, o cronômetro marcava quanto tempo foi
“desperdiçado”. Quanto menos tempo conectado e recebendo ligações,
mais a nota de avaliação do funcionário baixava – e, com isso, menos chances
ele tinha de conseguir uma possível mudança de cargo.

O cronômetro também pressiona o tempo das ligações. O padrão que costuma
ser exigido pelas empresas para os SACs é de três a quatros minutos para
resolver o problema do cliente – e, muitas vezes, para aproveitar a chance e
tentar vender para ele um novo serviço. Se você demora muito mais do que isso
em uma ligação, acaba sendo questionado pelos supervisores. “Eles já
passam atrás da sua mesa e fazem sinal para você encerrar quando está demorando
muito. Eram quatro minutos para atender, tirar a dúvida do cliente, entrar na
conta pra ver se ele tinha alguma pendência e ainda ofertar um serviço para
fazer uma venda. E se você batesse a meta de vendas, mas não batesse a meta de
tempo da ligação, você não ganhava o bônus”, disse Renan Mattos, que
trabalhou como operador de telemarketing em um banco.

As metas, inclusive, são o grande pesadelo de quem trabalha nessa área. Quando
não são batidas, geram a pressão por um melhor desempenho, e quando são
batidas, geram outras metas ainda mais ousadas.

O pesadelo de um cancelamento

Todo mundo que já precisou cancelar uma assinatura ou um plano de
telefonia móvel, por exemplo, sabe o quão árdua essa tarefa é. E não é
coincidência: algumas empresas orientam os atendentes a não permitirem de
maneira alguma um cancelamento. É o que se chama de “política de retenção
do cliente”.

Segundo operadores, a empresa normalmente tem um protocolo de cerca de
dez itens para você oferecer ao cliente antes de permitir que ele cancele o
plano. A chance de a ligação cair nesse meio tempo é grande. E quando isso não
acontece, há ainda uma outra forma de impedir o cancelamento.

Um call center em São Paulo, reconheceu que algumas empresas adotam essa
prática. No entanto, os responsáveis pelo serviço afirmaram que costumam
aconselhar essas companhias de que esse comportamento pode ser nocivo à
reputação delas. “A gente tenta falar com nossos clientes (empresas) que
hoje o que vale mais é um atendimento efetivo e mais humanizado, sem tanta
formalidade. Algumas acatam isso, outras ainda estão presas ao velho
modelo”, afirmou um dos diretores do call center.

No local, havia sala para uma massagem rápida e uma decoração especial
de futebol para os funcionários entrarem no clima de Copa. “Nós tentamos
proporcionar o melhor ambiente possível, porque é uma profissão estressante. E
o atendente que não está bem consigo, não conseguirá fazer um bom
atendimento.”

Os operadores entrevistados acreditam, porém, que a estratégia mais
eficiente para melhorar a rotina deles seria diminuir a pressão do trabalho e
“desengessar” o atendimento, dando mais autonomia a eles na hora de
falar com os clientes.

Alguns estão afastados da profissão por causa de problemas médicos ou
porque escolheram outros caminhos, mas levaram dos tempos “na profissão
mais odiada do mundo” uma “lição humana”. “Acho que a lição que ficou é humana, é isso de
tentar entender o outro lado. Toda vez que alguém me liga tentando vender
alguma coisa, eu tento entender que tem tudo isso por trás. De sistema, o
tempo, a meta. Então tento sempre ser educada, porque uma grosseria ali é o que
pode acabar com o dia da pessoa”, concluiu Flávia, atendente que não quis
ter o nome divulgado.


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