​HIPER-REALIDADE

  • Língua Portuguesa
  • Publicado em 8 de maio de 2020 às 21:35
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:20
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Cena: Homem bem vestido. Terno. Semblante sério. Voz empostada, mas não agressiva de vendedor de seguros: Não queríamos falar sobre isso neste momento de incertezas, mas, se você é um profissional de saúde, faça o seu seguro de vida agora. Você terá 50% de desconto e não haverá carência. Nossa seguradora foi a primeira a pensar na sua saúde e no seu futuro.

Máxima capitalista: Enquanto uns choram, alguns vendem lenço. É a morte literal do sermos humanos. O dr. Duncan MacDougall calculou, sem certeza, que, logo após a morte, todos perdem 21 gramas. Segundo ele, seria a perda da alma. O cálculo variou. Seres inumanos ganham muito à custa da desgraça alheia, esses não têm alma. Burlaram o cálculo.

“Nunca faça surpresas, porque, ao invés de surpreender, você pode ser surpreendido”. “Esse ditado popular é mais velho que o rascunho da Bíblia”. Ridículo: usei o pleonasmo depois do pleonasmo. Nossa vida virou uma sucessão de pleonasmos. É uma catacrese.

Não fomos surpreendidos, estamos, há muito, escrevendo nossa distopia, como se estivéssemos sentados frente a uma cartomante: Acredito (fui lá), mas não acredito (o futuro é feio, mas pode ser lindo). Pior, sabemos que o vírus clone virá e sem data marcada, mas virá, matará mais com requinte de crueldade. Dizem que este é um momento único na história. Mentira. Todas as gerações que passaram por isso creram que foi uma praga envida por Deus ou lemos, com clareza, as previsões de Nostradamus. Mentira. Somos maus alunos.

O boletim do mau aluno: Gripe Russa (H2N2 – 1889-1890) 1,5 milhão de mortos no Usbequistão, África, América, Europa, Ásia e Brasil. Gripe espanhola (H1N1 – 1918-1919) 100 milhões de mortos África, América, Europa, Ásia e Brasil. Gripe asiática (H2N2 – 1957-1958) 2 milhões de mortos China, Ásia, Oceania, África, Europa e Estados Unidos, Brasil. Gripe de Hong Kong (H3N2 – 1968-1969) 3 milhões de mortos Hong Kong e EUA.Gripe suína (H1N1 – 2009-2010) 17 mil. México. Gripe aviária (H5N1 – 1997 e 2004) 300 de mortos Sudeste Asiático, Europa e África. Surto de ebola (2013-2016) 11.323 mortos África, Ásia, Europa, EUA. Pandemia de covid-19 (?) todos os continentes.

Recriamos a realidade no cinema e na fotografia, agora nas redes sociais e antissociais: o hiper-realismo. Pessoas trancafiadas por vontade. Assustador, a doença andou na contramão, os ricos a pegaram primeiro e, agora, muitos estão à deriva em navios luxuosos, caixões flutuantes. Não há nenhum porto seguro. Nesta distopia, os ricos foram dizimados primeiro.

Montes de mortos extraídos do chão por empilhadeiras, antes de virarem adubos, de mortos depositados em caminhões frigoríficos, antes de empestearem o ar. Os sistemas de saúde, em colapso, condenam os velhos à guilhotina e os médicos ao dilema de deus em pânico. Salvem o futuro até 40 anos; enterrem o passado de 70 anos para cima.

Vivemos a hiper-realidade, uma espécie de imitação destrambelhada da noite de São Bartolmeu, em que os mortos eram transportados em carroças e depois queimados em covas coletivas. Vivemos um maluco holocausto, porque bala escolhe inimigos; vírus não.

Os donos do capital? O capital é a alma do negócio. Nossa história é mesmo uma sucessão infindável de pleonasmos: Trump paga mais caro por produtos chineses para combater o vírus. Pratica pirataria à luz do dia. O Brasil, aliado(?), ficou literalmente a ver navios. Trump chegou atrasado ao baile, mas tem cacife para comprar o clube; ao Brasil, cabe o nefasto papel de parede. O primeiro mundo escolhe quais povos do terceiro mundo vivem, quais morrem. Trump: American First. Brasil: “Ame-o ou deixe-o”. À elite, interna-se; aos pobres, enterra-se.

“O mineiro só é solidário no câncer”: frase que Nelson Rodrigues enfiou na boca do Otto Lara Resende. O brasileiro é solidário no desastre. Os espertalhões são solidários no roubo. O governo decretou estado de calamidade pública: já não estávamos antes? As “otoridades” só legalizaram a festa para a qual você não foi convidado. Estado de calamidade pública permite ao governante gastar sem licitar. Tudo passa a ser urgente. O governo não socorreu ninguém. Você não ganhou nada. Sua dívida está sendo “rolada”. Os boletos estão no fim do túnel. Que túnel?

Você corre o risco de perder o seu emprego; os políticos não.

Melhor comprar um seguro de vida, com o moço de eterno vendedor.


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