Há um monstro em minha casa

  • EntreTantos
  • Publicado em 15 de agosto de 2017 às 16:16
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:27
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A primeira visão refletida no espelho sempre assusta. É estarrecedor. Indescritível o sentimento de derrota. Perplexa, fechei instintivamente os olhos e os reabri, implorando com todas as forças d’alma, para que pudesse acordar daquele pesadelo, ou, ao menos, me fortalecer diante daquele primeiro e doloroso impacto. É mentira! Sugeria minha mente. Isto não está acontecendo, não comigo! Em vão, aquele pedaço de vidro idiota, refletia uma mulher que parecia habitar este planeta desde sua origem, tão caricata, decrépita e frágil era sua expressão sombria. Abaixo daquela cratera ossuda, onde dois olhos apagados buscavam se esconder do mundo, duas rodelas roxo-violetas que, nem mesmo o mais sofisticado aparato de maquilagem seria capaz de esconder. Nos lábios que há muito não sentia o fulgor de um contato humano, vários vergões azulados se uniam. Hematomas se destacavam em toda parte. O corpo todo ardia, mas, era a alma que as labaredas verdadeiramente consumiam. Uma alma dilacerada, em frangalhos, apertada. As primeiras gotas de uma lágrima quente, ondulavam pela superfície daquela face de papelão amarrotado. Brota em meu âmago ferido uma pergunta acusadora. Como fui capaz de me apaixonar por um ser humano tão agressivo, um monstro covarde e insano? Muitas decisões inquiriam imediata resposta, atitudes se faziam crucialmente necessárias, mas, no momento, o maior e mais temoroso desafio era um só: Como eu sairia à rua? Qual seria a primeira pessoa a quem eu mentira sobre o fato? Será que novamente a escada mereceria a culpa? Ou, novamente, seria a queda de bicicleta? E o pior de tudo, quantos dias levariam até uma próxima agressão? ”

                Este é um relato fictício, criado por este que aqui rasura tais palavras, somente a pretexto de abordar uma questão gravíssima que, em plena revolução tecnológica, no ápice da manifestação da sapiência humana, se torna parte do cotidiano. Tais quais células cancerígenas em constante multiplicação, é o crescimento dilacerado de crimes domésticos. Verdadeiras barbáries ocorrem contra o sexo feminino, bem no seio de seus lares, contraditoriamente, no local onde deveriam gozar a proteção que se espera de um lar. Há, no Brasil, a estimativa de que a cada dois minutos, cinco mulheres sofrem com a violência doméstica, enfatizando o fato de que, somente as denúncias concretizadas constam realmente nas estatísticas, portanto, não seria difícil imaginar que o número há de se triplicar. Somente quem cresceu, ou tivera a infelicidade de partilhar um ambiente destroçado pelos estilhaços da violência é conhecedor da lenta cicatrização dos hematomas produzidos na alma de uma família inteira, quase sempre, vítima de um só agressor, ou seja, “o companheiro”, “o pai de família”.

                Ao leitor, permito a criatividade de batizar nossa personagem com o nome que melhor lhe convir, há uma infinidade deles. Trata-se de uma das tantas “Marias” que frequentemente encabeça as manchetes de jornais e se resumem a meras estatísticas. Porém, não nos esqueçamos de que esta poderia ser a história de nossas filhas, nossas mães e nossas esposas. Portanto, já que em minha modesta concepção, refletir é, talvez, a ação mais válida que podemos de fato praticar, pensemos e labutemos na árdua luta de se erradicar de vez este mal que assola inúmeros lares diariamente.  “O inferno são os outros”, apontara sabiamente Sartre, pois, lamentavelmente, há, espalhado em toda parte ao redor, verdadeiros covardes sendo, diariamente, inescrupulosamente, um inferno na vida de mulheres que nada mais possuem em sua defesa, exceto o silêncio, exceto o medo, no qual amargam uma existência turva e traumatizante.

É fato que, estranhamente, há mulheres que transparecem mesmo satisfação em dividir os dias com seu agressor, é mais um dos tantos mistérios restritos aos seres humanos e seus fetiches, ao que prefiro deixar em mãos dos estudiosos, porém, ressalto, que o texto faz referência especial às verdadeiras “mulheres” de fato.

Sei que em algum lar, infelizmente, alguém estará entre lágrimas, ou, pelo menos tentando contê-las, ao ler tais palavras, enquanto memória dolorosas lhe surgem na mente, quais labaredas esguias a lhe queimar o ventre. É especialmente a você, que sofre direta ou indiretamente com a violência doméstica, a quem tributo meus sinceros sentimentos, além é claro, os votos para que tenha coragem e denuncie seu agressor, antes que seja tarde demais.

                Pensamento:

                “(…) tive incontrolável ímpeto de lhe estapear a face fêmea, mas, percebi que, a covardia é a podridão da minha incapacidade de conquistá-la.”

                Valdeci Santana. 

*Essa coluna é semanal e atualizada às quartas-feiras.


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