E o professor, que não ensina, ensina? (Ninguém vai ler isso; é muito longo)

  • Língua Portuguesa
  • Publicado em 15 de outubro de 2019 às 17:35
  • Modificado em 8 de abril de 2021 às 14:20
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  • Ninguém vai ler isso; é muito longo

                Ao longo de 42 anos de profissão, conheci todo tipo de aluno e de professor. Já dei aulas em inúmeras escolas e em tantas e tantas cidades. Vivi e convivi com professores que viajavam 1000 km por semana para ganhar a vida ensinando. Muitos a perderam. Ganharam lembranças, mas não viraram lenda. Atendi pais e alunos com possíveis dúvidas e problemas diversos, como professor, consultor e psicólogo. Formei uma enorme quantidade de professores e alunos. Dei uma média de 50 aulas por semana. Escrevi tanto material didático, que tenho a impressão de que as linhas enfileiradas facilmente chegariam à lua. Viajei mais de 1000 km/semana. Tive duas escolas e um AVC. E pronto. Chega.

Noutro dia, fui a uma feira dedicada a pessoas que poderiam escolher, por livre e espontânea vontade, uma escola para estudar. A idealizadora do ENEM deu uma palestra, depois abriu para perguntas. Senti-me um pária educacional, quando um professor, munido de um microfone, atacou o que, segundo ele, era a “indústria” dos “famigerados” cursinhos. Desde que me entendo por professor, dou aulas em cursinhos. Pisei na UFJF e um semestre depois já dava aulas no maior cursinho da cidade.

Os cursinhos deveriam existir? Se o sistema educacional fosse criado para seres humanos, não. Se as escolas fossem formativas e não informativas, não. Se fôssemos educados para saber e não para o mercado, não. Se não fôssemos ensinados a ser empregados, mas sim empreendedores, não. Se, em um país tão desigual, o ingresso às universidades públicas não levasse em conta apenas a tal meritocracia, não. Se não vivêssemos massacrados pelo tal vestibular, não. Se não houvesse a indústria do EAD e do PBL, não. Se não houvesse o ENEM, não. São o mal necessário. Sim.

                O professor ingenuamente (?) acreditou, de acordo com os seus interesses (?), que, com o advento do ENEM, os cursinhos acabariam. Ninguém é tão ingênuo assim. O ENEM, criado para uma coisa, virou outra, uma espécie de monstrengo balizador para a propaganda política. A cara do monstrengo virou a porta de entrada para as universidades públicas. Dessa forma, à imagem e semelhança dele, pariu uma infindável fábrica de cursinhos só para ele. Por culpa do “modelão” ENEM, retrocedemos duas décadas. Voltamos à decoreba. Ele promete aos pobres as mesmas chances dos ricos, mas isso é pura balela. Passe os olhos pelo questionário socioeconômico. Verá as distorções. Bato nesta tecla da obviedade e os números nunca me desmentiram.

           Os professores de cursinho exercem o seu papel fundamental no processo deseducacional. Levam o processo às últimas consequências. Ou alguém, em sã consciência, crê em aprendizado, depois de um conjunto de aulas de disciplinas diferentes, ministradas entre as 7h e as 15h? Na primeira aula, o aluno está com sono; na última, com fome. Nosso modelo, se é que podemos chamar assim, criou os cursinhos. Sabe o que vai acabar com eles? A infindável quantidade de universidades particulares abertas sem nenhum critério. Essas serão a universidade particular para os pobres; universidade pública é para rico que pode pagar cursinho.

E os lobbys dos grandes grupos educacionais? Que governo, em boa parte, financiado por eles, teria colhões para enfrentá-los? Os donos dos cursinhos grandes ganham milhões, empregam milhares de pessoas, acabam tampando hemorragia com band-aid. A disseminação do Ensino a Distância é a prova cabal, é a indústria que o professor esqueceu (?) de mencionar. O MEC incentiva a propagação do professor virtual, quer até fazer dele modelo para pais ensinarem seus filhos em casa. Mais que cursinhos proliferam plataformas digitais. Mas, educação não exige interação, aproximação, troca de experiências?  

                A prova do ENEM será feita pelo computador. Nem deus sabe como. Vai haver universidade para Hacker, pode acreditar, curioso leitor. A nova fronteira educacional é tornar a tela do computador humana e o aluno disciplinado? E o professor? Finge que há alguém do outro lado da câmera ou que o chat é o mesmo que um contato? Finge que ensina sem saber se o aluno aprende? Isso não é um “cursinho”?

             Neste dia dos professores, que são todos, surgem histórias edificantes dos que deram e dão a vida por seus alunos e pelos projetos criados pelo governo, com cara de pirata e tapa-olho. Poucos se lembram que a “desforma” educacional pretendia expulsar boa parte deles, a pontapés, dos currículos escolares. Neste dia, todos falam dos “salários mérdicos” da rede pública. O idealismo (?) mantém muitos deles na escola. Sabe por quê, enrolado leitor? Porque não têm para onde ir. Boa parte só sabe dar aulas, mesmo depressiva, desorientada. Um ou outro prefere pular do décimo andar de um edifício a voltar para a sala de aula.

                O alto índice de depressão, o medo das agressões, o desespero de tentar ensinar a quem quer ou não tem como aprender afugentou quem queria ser professor. Ninguém ensina em um país em que vale a pena entrar em qualquer faculdade de fim de semana somente para ter o diploma de doutor. O sistema deseducacional dos absurdos mesmo: o aluno da escola pública não sabe ler e escrever, o da escola particular também não. Aprende a decorar um modelo para virar universiotário. Entrar para a universidade é difícil? Sair é muito mais. Um mau aluno vira um mau professor que cria um mau profissional que vira um mau professor, que cria um mau aluno… (o ciclo vicioso eterno)

                Jovens, como eu, que vieram de classes baixas, se tornaram professores, porque o curso é barato e dá para começar a trabalhar cedo. A vocação fica em segundo plano; o primeiro é sobreviver. Quando penso na minha profissão, penso no professor Barata de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em Fraulein Elza de “Amar Verbo Intransitivo”. Hoje será um dia de sol, calor, lágrimas e homenagens; amanha será de mordaça, pequeno salário para muito mês, ilusão. IBOPE (do qual o professor de escola particular é refém) e leis estapafúrdias. Muitos professores me estimularam, porque eram bons; outros me estimularam, porque eram ruins. A que me inspirou era muito chata, chata mesmo, chata de carteirinha. Ela me inspirou, não por que não soubesse nada, mas por que não tinha paciência com a ignorância. Dizia: “Vim aqui para desasná-los”. Lembra-me o professor gordo, impaciente do conto “Os desastres de Sofia” de Clarice Lispector.

                Hoje homenageio, entre tantos, o professor de cursinho, que vive nas salas de aula ou morre nas estradas, que vive o estresse do aluno, como se fosse seu, que enfrenta o IBOPE todos os dias. Os que sabem e os que enganam bem (outra forma de sabedoria).


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