DEGRAUS DE DORMENTES

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 26 de abril de 2017 às 17:17
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:10
compartilhar no whatsapp compartilhar no telegram compartilhar no facebook compartilhar no linkedin

Toda minha  infância e parte da  adolescência  morei  na  colônia de casas de uma grande e antiga fazenda em Araras, São Paulo. Íamos pouco à cidade, tínhamos quase tudo ali: escola; farmácia; um médico que atendia a domicilio; a d. Lazinha, benzedeira que curava quase todo tipo de mal; a  igreja onde todos se reuniam aos domingos de manhã; e um clube recreativo onde calorosos campeonatos de bocha eram disputados após a missa . Havia  também a “venda do seu João,”uma mercearia onde o pai fazia as compras do mês e onde eu e minhas irmãs comprávamos  balas, doces e sacolés com as moedas  que ganhávamos  vez em quando  por, segundo minha mãe, merecimento. O arroz, o feijão, o trigo, e as verduras eram adquiridas quase sempre de vizinhos das fazendas próximas, que plantavam, colhiam e vendiam aos colonos.  Sacos de cereais e grãos disputavam espaços nas prateleiras da dispensa com pedaços de carnes defumadas, ovos realmente caipiras, açúcar, sal, grandes latas com carnes conservadas em  gorduras…quase tudo plantado, criado, processado  ali mesmo. Tempos de fartura.

 Nossa casa, um casarão de piso vermelho e grandes janelas de madeiras pintadas de azuis celeste, tinha um alpendre todo ornamentado por samambaias e comigo-ninguém-pode, que dava acesso a sala principal. Nessa, na parede à direita de quem entravam, três portas protegiam o interior dos quartos da casa. Atravessando a sala, chegava-se a uma escada com dois lances de  degraus feitos com dormentes  donde se via, num plano abaixo, a cozinha com o forno e fogão a lenha pintados de vermelho, como o piso da casa. Minhas mais nítidas lembranças dessa época remetem a esse espaço.

 Sentado, hora nos dormentes, hora nas beiradas do forno, cresci ouvindo histórias e sermões enquanto  minha mãe com o avental  enfarinhado, preparava fornadas de pães  artesanais.

Atravessava o dia  vendo  ela separar porções de farinhas, ovos, gorduras, fermento, lingüiças, pancetas  (meu pai adorava o pão de torresmo dela) – tudo pesado e medido a olho – e dar inicio a empreitada que findaria somente  ao cair da tarde, quase escurecendo, quando o pai chegava do trabalho.  Acendia o forno, misturava a massa, sovava, punha para crescer, modelava, outro crescimento e assava.  Nas pontas dos pés na beirada do forno eu ficava olhando os pães crescerem e dourarem. O aroma quente do fermento era tão sedutor!

Havia um momento particular do qual sinto saudades, quando o forno era esvaziado e os pães  postos à mesa:  ainda consigo sentir o delicioso perfume inundando nossa casa e ouvir o “cantar” do pão recém assado quando estalavam as crostas enquanto esfriavam.

O tempo passou,  me tornei padeiro, um padeiro artesão.  Há alguns anos  compartilho fornadas de pães artesanais  com amigos, vizinhos, parentes e mais recentemente com clientes. Como minha mãe faço pães sem pressa, devagar,  usando apenas as mãos como utensílio,  respeitando cada estagio que o pão me pede. Sempre que possível usando  ingredientes produzidos de forma simples e tradicional e de origem conhecida. Em troca o forno me devolve pães  de verdade, cheios de personalidades. Com identidade.

Também gosto de comer e falar sobre pães. Nessa coluna, que será semanal, prometo compartilhar muitas fornadas de historias, receitas, harmonizações e curiosidades sobre esse alimento extraordinário: o pão.

Inté!

*Essa coluna é semanal e atualizada às quartas-feiras.


+ zero