A história da massa que surgiu no século 15 e é feita à mão até hoje

  • Cesar Colleti
  • Publicado em 8 de setembro de 2018 às 15:21
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 19:00
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Em forma de fios trançados, são preparadas com conhecimentos passados através das gerações na Sardenha

A
história por trás do nome lorighittas – derivada ‘lorigas’, palavra sardenha
que significa algo parecido com “anel de ferro” – varia dependendo de
para quem se pergunta. Demontis é de Segariu, cidade próxima a Morgongiori,
onde surgiram as lorighittas; para ele, o nome se refere aos anéis de ferro que
eram fixados à parede externa das casas para prender cavalos e bois quando os
homens voltavam do campo. 

Mas há outro significado. Lorighittas também pode ser
a palavra sardenha para “orelhas”. “Às vezes as lorighittas
eram preparadas por jovens e adolescentes solteiras que penduravam a massa em
suas orelhas depois de secá-las sob o sol. Elas fingiam que eram joias, já
que ninguém tinha acesso a ouro naquela época”, contou Demontis.

Ao longo dos séculos, a ilha viveu por vezes
isolada, mas sofreu conquistas de praticamente todos seus vizinhos
mediterrâneos. Isso influenciou as tradições culinárias e hábitos da região.

Especialidades como a fregola,
uma massa arredondada; Malloreddus alla Campidanese, com um formato de concha
que quase lembra uma larva; e su filindeu, uma das mais raras tradições de
massa no mundo, são algumas das responsáveis por popularizar a massa sardenha. 

Mas as lorighittas permaneceram relativamente desconhecidas da maioria. “Ninguém conhece as lorighittas – é um dos segredos
bem-guardados da Sardenha”, afirmou Efisio Farris, escritor e chef
sardenho que vive nos EUA desde 1986. “Quando abri meu restaurante em 1988
em Dallas (Texas), queria oferecer às pessoas a comida com a qual eu cresci.
Além de ser um tributo à minha família, é importante preservar essas receitas e
histórias”.

Há dois anos Farris visitou Morgongiori com sua tia e
conheceu duas mulheres que preparavam manualmente as lorighittas. Ele sabia que
tinha se deparado com algo que precisava levar para os Estados Unidos. “Fiquei um pouco preocupado, porque como dá muito
trabalho preparar lorighittas (cada trança é feita à mão), e eu teria que
cobrar mais por elas…”, contou Farris. “Mas as pessoas reconheceram a
qualidade e o sabor do prato, e logo ele se tornou um favorito do nosso
restaurante”.

Situado ao pé do Monte Arci, no Oeste da Sardenha, o
vilarejo de Morgongiori remonta a milhares de anos, desde o período nurágico,
entre os anos 900 e 500 a.C. Os primeiros colonos chegaram ao local no século
6º a.C. em busca de obsidiana, uma pedra preciosa de cor preta que se forma a
partir das lavas vulcânicas da região. Hoje, a vila de 800 habitantes é talvez
conhecida por tapeçarias e artesanato, tradicionalmente feitos em antigos
teares horizontais e preservados no Museu Vivo de Arte Têxtil. 

A segunda
atividade manual mais conhecida é a lorighitta, que está ameaçada de extinção,
segundo a fundação Slow Food’s Ark of Taste. “Lorighittas são muito valiosas porque corremos o
risco de perdê-la totalmente”, disse Raimondo Mandis, diretor da
organização Slow Food Cagliari, em entrevista por telefone. “Já não
restavam nem dez mulheres produtoras manuais de lorighittas, e isso em uma base
sazonal”.

O primeiro registro histórico
das lorighittas data do século 16 de um testemunho que menciona uma massa
peculiar com trançado em forma de anel na Sardenha. O relato foi feito pelo rei
da Espanha, que na época detinha o controle da maior parte do Sul da Itália,
incluindo Sardenha, Nápoles e Sicília, e que perguntara sobre as atividades
econômicas da ilha.

Tradicionalmente, explicou Mandis, as lorighittas eram
preparadas exclusivamente em Morgongiori para a festa anual do Dia de Todos os
Santos, em 1º de novembro. “Como em muitas regiões da Itália e
especialmente a Sardenha, os costumes e tradições alimentares estão ligadas às
aldeias por qualquer que seja o motivo, desde religioso a reuniões familiares
para almoços de domingo”, disse ele. 

Fábulas
sobre a massa

Uma fábula popular contada às crianças de Morgongiori narra a
saga de Maria Pungi Pungi. Armada com uma forquilha, a personagem que parecia
uma bruxa voava sobre as casas na noite de Todos os Santos e furava a barriga
de crianças que tinham comido muitas lorighittas, para que a massa caísse do
estômago.

Por
séculos a cultura camponesa da Sardenha ditou como dever da mulher o de
preparar a comida enquanto o homem se ocupava no campo. Por isso era comum que
pratos como esse fossem feitos principalmente por mulheres, explicou Mandis. “O
nome lorighittas remete à ideia de pequenas orelhas”, diz Mandis.
“Mas sua forma tem relação com a aliança de casamento, preciosamente feita
por mãos femininas, tradicionalmente transmitidas pelas mulheres da família de
mãe para filha”.

Ainda
existe discussão sobre se as lorighittas eram feitas exclusivamente pelas
mulheres solteiras do vilarejo na esperança de encontrar um marido, mas isso
não seria difícil de acreditar dada às histórias locais de superstições
relacionadas à comida e ao matrimônio. “Há
muitas tradições na Sardenha relacionando comida e casamento”, reforça
Mandis. “No caso das lorighittas, há a ideia de que, enquanto as jovens
solteiras esperavam ansiosamente por um anel de noivado, elas se contentariam
com um anel de massa da cozinha de suas mães e avós”.

A
receita requer apenas três ingredientes: farinha de semolina de grão duro (um
trigo típico dos campos da Sardenha), água morna e sal. “Na
minha opinião, a parte difícil não é aprender como preparar as lorighittas, mas
ter a destreza necessária para moldá-las”, admitiu Francesca Turnu,
vereadora de Morgongiori. “Essa é uma tradição culinária que está viva na
cidade porque as mulheres de Morgongiori continuam a prepará-la manualmente
até hoje”. 

Geração de mulheres

As mulheres em Morgongiori ainda seguem a mesma técnica de
centenas de anos. Elas amassam a mistura por no mínimo 30 minutos, geralmente
muito mais, ocasionalmente pingando água salgada até que ela fique maleável.
Assim que a massa está pronta e os pedaços de lorighittas são trançados, eles
são deixados em um cesto de bambu para secar. Essa é uma boa hora para começar
a preparar o molho.

Em
Morgongiori, o ragu típico inclui frango ou pombo (uma espécie apropriada para
o consumo), cebola, alho, salsinha, vinho branco e polpa de tomate (tomato
passata). Depois de cozinhar as lorighittas (por menos de três minutos), elas
são revestidas pelo ragu e queijo pecorino fresco. 

Cada vilarejo da Sardenha tem
suas receitas tradicionais que utilizam produtos locais. “O clima muda
bastante na parte central e mais montanhosa da ilha, onde o pastoreio é
predominante”, disse Carole Counihan, professora emérita de antropologia
da Universidade de Millersville, nos EUA, e professora visitante da
Universidade de Cagliari, na Sardenha. “Todo mundo tem quintais com
vegetais, o pastoreio de ovelhas é dominante nas regiões montanhosas centrais,
enquanto que a pesca é mais importante nas regiões costeiras, então há muita
variação na dieta”.

Counihan,
que estuda a dieta sardenha e o ativismo de tradições alimentares, explicou que
a partir dos anos 1980, com a introdução dos supermercados, alguns hábitos
alimentares tradicionais sardenhos foram se perdendo. “A
Sardenha tem mais metros quadrados de supermercados do que qualquer outra
região da Itália, e muitas pessoas que entrevistei contaram que, quando
crianças, se abasteciam principalmente de pastores e agricultores locais”,
disse Counihan. “Houve um declínio dessas práticas, que agora estão sendo
resgatadas. Há uma ressurgência de jovens agricultores voltando para o campo
com novas maneiras e novos modelos de apoio ao movimento de comida local que
está começando a tomar forma”.

O
esforço de se manter as lorighittas começou em 1994, quando o Conselho
Municipal de Morgongiori decidiu sediar um festival dedicado à especial massa.
O prefeito Renzo Ibba contou que a cidade convidou os mais aclamados chefs da
Sardenha – incluindo Roberto Petza, dono e chef do estrelado S’apposentu di
Casa Puddu em Siddi, um vilarejo na parte central da Sardenha, não muito longe
de Morgongiori – para apresentar receitas diferentes com a massa. “O
conselho municipal também envolveu pequenos produtores locais (no caso, todas
mulheres) para dar nova vida à tradição”, explicou Ibba.

Morgongiori
hoje dedica o primeiro domingo de agosto às lorighittas no festival Sagra Delle
Lorighittas para promover seu legado. “Graças
a alguns bons chefs, estamos vendo lorighittas nos menus de restaurantes ao
redor do país; elas são muito mais comuns agora”, disse Mandis. “Em
geral, são encontradas em restaurantes renomados, e é bom ver algo que estava
praticamente perdido sendo revitalizado”.


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