As pombinhas e a varanda

  • Entre linhas
  • Publicado em 18 de novembro de 2016 às 15:38
  • Modificado em 8 de outubro de 2020 às 18:02
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O gosto amargo na boca já indicava como seria o dia. Longo e pesado. Com dificuldade, tentava arrastar para fora da cama aquele velho corpo que ainda insistia em acreditar que era possível continuar. O quarto escuro, revirado pelas roupas e sapatos amontoados há mais de 3 semanas, dava sinais claros de que há tempos só ela transitava por ali. As plantas em cada canto da casa respiravam sôfregas ansiando por um pouco d’água. Mas suas súplicas não tinham eco. E elas sabiam que era questão de horas para sucumbirem.
E ela, com aquele andar cambaleante, tentava se encontrar em meio à desordem. Procurou a poltrona de canto e não achou. Sentou-se no chão mesmo. Sentiu a umidade encostar em sua carne branca, pálida e magra. Um arrepio percorreu sua espinha. Viu tudo rodar, mas não desmaiou. Um cheiro estranho vindo da varanda chamou sua atenção. Ao abrir a pesada cortina que a separava do mundo lá fora, avistou duas pombinhas mortas. Colocando-as no colo, sentiu uma inevitável vontade de embalá-las com carinho. Mas era forte o cheiro fétido que vinha delas. Olhou para o céu azul. Jurou ter visto Deus. Chorou, como há muito tempo não fazia. Sentiu que suas lágrimas lavavam seu corpo velho e cansado. Pediu ajuda. Com todo seu coração. Foi quando a campainha tocou. Devagar, caminhou até a porta. Agora tinha certeza: era Deus que estava ali em sua frente. Num ímpeto, ajoelhou-se e quando percebeu, já era noite. Madrugada afora. Um vento forte vinha da varanda. Percebeu que havia adormecido mais uma vez em frente à TV. Levantou do sofá, foi à cozinha e tomou um copo de leite. E olhando para o céu, que estava forrado de estrelas, estremeceu ao lembrar de seu sonho. E sorvendo o último gole de leite, decidiu: Não queria terminar daquela forma. Então voltou para cama decidida a tomar todas as decisões adiadas até agora. Mas isso seria feito depois. Agora era hora de voltar a dormir.

*Esta coluna é semanal e atualizada às sextas-feiras.


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